LEANDRO JUNGES
Na trilha genética do AVC
Casos reunidos em banco de dados de Joinville atraem a atenção de um dos centros de genética mais importantes do País
O eletricista Alfredo Przylepa, aos 48 anos, não ficava doente por nada. No máximo, uma gripe ou um resfriado. Os exames que ele fazia sempre apontavam pressão normal, nada de diabetes ou colesterol acima do padrão. Alfredo onsiderava-se um homem com a saúde quase perfeita. Quase. Ele sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) num sábado, logo após o almoço. Alfredo tirava um cochilo quando sentiu-se mal e foi até o banheiro. “Estava bem e de uma hora para outra ele passou mal. Perdeu os movimentos, estava com a boca torta e a língua travada”, lembra a mulher dele, Luciana Dias Cardoso, 42 anos.
O homem foi levado por um vizinho para um pronto-atendimento e, depois, para o Hospital Municipal São José. Fez uma bateria de exames e recebeu a confirmação: o AVC paralisou a mão e a perna direitas do eletricista. Era mais um vítima de um mal silencioso que intriga não apenas a família, mas médicos e cientistas. Alfredo estava fora de qualquer padrão de comportamento ou predisposição para se tornar uma vítima de AVC.
Segundo o médico Norberto Cabral, o mundo científico trabalha com potenciais conhecidos: o AVC é causado por pressão alta, diabetes, colesterol elevado, estresse, tabagismo e falta de exercícios físicos.
Cerca de um quarto dos pacientes de AVC não fazem parte do grupo de risco convecional. É uma estatística usada por médicos que só se comprova com muita pesquisa. E isso é o que não falta em Joinville. A cidade tem o segundo maior banco de dados sobre a doença do Brasil e as informações mais completas. Foi o que chamou a atenção de especialistas do Laboratório de Genética Molecular da Unicamp, de São Paulo.
Afredo foi incluído em um grupo de pessoas escolhidas para fazer parte de uma pesquisa realizada pela Universidade da Região de Joinville (Univille) e pela Unicamp, a partir de dados coletados em hospitais, prontos-socorros, prontos-atendimentos e ambulatórios da cidade. Uma pesquisa anterior da Univille mostra que quase 10% dos casos de AVC em Joinville estão sem uma causa que possa ser apontada imediatamente. Esse mistério tem levado estudiosos a apontar causas genéticas para esses casos. Coincidência ou não, a mãe de Alfredo teve três AVCs, o último deles, faltal, aos 74 anos. E tias dele também enfrentaram a doença.
LEANDRO JUNGES
Pesquisa pode confirmar se causa é genética
Antes de migrar para a área genética, a pesquisa sobre AVC em Joinville, iniciada em 2005, traçava um mapa da doença na cidade. Está garantido até 2013 o convênio para a coleta de dados, que poderá ser prorrogado indefinidamente. Essas informações são consideradas de suma importância para trabalhadores e gestores da saúde, pois, segundo Norberto, é a doença que mais mata no Brasil hoje.
Mas, segundo assessoria de imprensa do Ministério da Saúde, o AVC é a segunda maior causa de mortes no País e a principal causadora de incapacidade do mundo. No Brasil, entre 2005 e 2009, registraram-se aproximadamente 170 mil casos. E destes, 17% terminaram em morte. E as estatísticas não terminam por aí. Das 11 milhões de internações registradas no SUS, cerca de 1,5% ocorreram por causa de AVC.
O alto número de afetados no Brasil e a qualidade do banco de dados de Joinville incentivaram a coordenadora do Laboratório de Genética Molecular da Unicamp, Iscia Teresinha Lopes Cendes, a vir para a cidade. “A gente só conseguirá fazer um bom trabalho genético se tiver um bom trabalho clínico anterior”, garante.
A partir destes dados anteriores, já coletados pelo médico Norberto Cabral e outros médicos envolvidos no trabalho, em outubro do ano passado começou uma série de coletas de sangue, tanto dos pacientes que não têm causa definida, quanto de famíliares. O objetivo é confirmar se a causa é genética ou não. A ideia, segundo Iscia, é abranger pelo menos 500 vítimas e os parentes, o que resultaria em aproximadamente duas mil coletas de sangue. “É muito trabalhoso. É uma tarefa que não é trivial”, explica. Essa coleta será realizada até abril de 2012.
“Quanto maior o número de coletas, mais coisas novas conseguiremos extrair. Tentaremos descobrir alterações genéticas relacionadas à sequência do DNA ou à estrutura dele”, adianta a professora da Unicamp.
Mas não será um trabalho fácil nem para Iscia, nem para Norberto e muito menos para a equipe da Univille, que irá colaborar com o estudo. Estima-se que o genoma de cada pessoa tenha entre 30 ou 35 mil genes e cada um deles deverá ser analisado. “Não é uma tarefa simples”, resume a professora.
LEANDRO JUNGES
Resultado poderá ter impacto mundial
Se a pesquisa confirmar a hipótese genética apontada pelos pesquisadores de Joinville e pela professora Iscia sobre AVC, o resultado poderá influenciar os tratamentos em âmbito mundial. Segundo a médica, os dados podem ser usados para localizar as pessoas com alto risco de desenvolver a doença e, com isso, controlar os ambientes externos que aumentam a incidência do acidente.
Mas essa primeira fase da pesquisa é somente a criação de um biobanco. Além de extração e estocagem de material, feitas pelo professor Paulo França, da Univille. Já a segunda etapa é a mais complexa, pois depende do pedido de recursos para o trabalho. Segundo Iscia, a análise de cada amostra deverá custar cerca de U$ 1 mil, o que resultaria num custo de U$ 2 milhões para toda a pesquisa. A equipe está confiante de que poderá dar prosseguimento ao trabalho.
SAÚDE PÚBLICA
Procura na hora da emergência
Segundo relatório, consultas em PAs e hospitais excedem às dos postos de saúde
Ao fim de 2010, a Secretaria de Saúde de Joinville tinha os números para fechar o seu relatório de gestão do ano, o que a permitiu chegar a uma conclusão: há uma inversão do modelo de atendimento da rede pública de saúde. Pelos cálculos da secretaria, o número de consultas de urgência e emergência responderam por 39,5% das consultas na cidade.
Uma portaria de 2001 do Ministério da Saúde aponta que o ideal para municípios é 15%. A atenção básica (postos de saúde) de Joinville foram responsáveis por 35,4% das consultas. Para a portaria que dá os parâmetros para o SUS, o modelo é 63%.
A conclusão do relatório é que a cidade precisa “fortalecer a atenção básica e reorientar o modelo de atenção com base no cuidado integral, coordenado e contínuo”. Na prática, investir em prevenção em vez de apagar incêndio e incentivar a população para que as unidades básicas de saúde sejam realmente a porta de entrada de quem procura a rede.
A meta é que cada morador faça uma consulta anual à rede básica. Em 2010, o acumulado foi abaixo disso – 0,76. Já as consultas de urgência e emergência alcançaram a média de 2,14 por habitante. Conforme a secretaria, a média não foge do preconizado pela portaria 1.011 do ministério, mas a chamada inversão, sim.
HOSPITAL SÃO JOSÉ
O grande herói silencioso
Em desabafo, médico do Hospital São José convida a refletir sobre como vemos o hospital que vive a cidade há mais de cem anos
Há alguns anos, seguindo o script de sempre, uma autoridade da Secretaria Municipal de Saúde, pressionada por mais uma rotineira reportagem sobre “os problemas do São José”, reuniu-se com a diretoria do hospital disposta a cobrar resultados capazes de reduzir aquelas notícias comprometedoras para tão ilustre e competente prefeito e sua equipe. Era preciso, segundo ela, acabar com aquela “desorganização na administração do hospital”. O que ouviu como resposta, no entanto, talvez possa ser aqui utilizado como a mais perfeita tradução da realidade deste grande hospital. Com toda a tranquilidade, o então diretor técnico Glauco Westphal brindou os presentes com uma série de números impressionantes referentes à produtividade do hospital e encerrou sua apresentação fulminando a autoridade com a seguinte pergunta: “Como pode ser desorganizado um hospital que trabalha permanentemente com 150% de seus leitos ocupados?”
Com esta pergunta, o qualificado médico intensivista e pesquisador, de prestígio nacional e cuja formação se deu orgulhosamente dentro das sofridas mas competentes paredes de nosso glorioso hospital, colocou o dedo na ferida. Apresentado na imprensa sempre como uma instituição cheia de problemas, com fotos de pacientes mal acomodados e muitas deficiências, o Hospital Municipal São José é, antes de tudo, uma grande vítima de sua extrema competência e dedicação à população de toda a região Norte do Estado de Santa Catarina, que dele tanto depende nas horas de angústia seja para o atendimento de um dramático acidente automobilístico ou para a realização de uma complexa e sofisticada operação para o tratamento de um câncer avançado.
Com um número de leitos muito inferior ao necessário para o volume de pessoas que o procuram 24 horas por dia, não é surpreendente que tenhamos em nosso saturado Pronto-Socorro um inaceitável acúmulo de pacientes em macas e cadeiras, ultrajando a dignidade de todos que ali convivem. Surpreendente mesmo é que todos estes pacientes tenham seu tratamento corretamente realizado, seus medicamentos administrados por uma incansável equipe de dedicados técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos e tantos outros funcionários que se orgulham da honra de poder ajudar ao próximo em nosso querido Zequinha, mesmo em condições tão adversas de trabalho.
Estes funcionários trazem consigo, no entanto, a grande mágoa de ver este hospital-herói ser apresentado a sua população de uma forma tão injusta. De quem é a culpa desta superlotação? Do Hospital São José ou de sucessivas administrações de políticos que preferem gastar o dinheiro público em obras populistas e outras peças demagógicas de publicidade pessoal?
Preocupam-se estes onde ficarão internadas as pessoas que nos procuram com a certeza de que, mesmo diante de uma superlotação, serão aceitas e terão suas vidas salvas em prolongadas operações nas madrugadas de nosso Centro Cirúrgico? Querem nossos políticos saber como ficarão na manhã seguinte outros pacientes cujas operações para tratamento de dolorosas doenças serão suspensas por falta de leitos nas Unidades de Terapia Intensiva, ocupados para o atendimento das vítimas da madrugada?
Pode alegar alguma destas autoridades municipais o desconhecimento do sofrimento existente entre pacientes, familiares e funcionários do Hospital São José? Por que não assumir a realidade deste grave problema de forma correta e resoluta, ao invés de realizar demagógicas e sucessivas trocas na administração hospitalar, em uma tentativa de transferir sua culpa para diretores em sua maioria bem intencionados e dedicados a enfrentar essa luta tão desfavorável, como é o caso de nosso presente diretor, Dr. TomioTomita, cujo esforço e dedicação são dignos de nosso reconhecimento e admiração?
Afinal, como compreender que a instituição mais importante de Joinville (imaginem a cidade uma semana sem o Hospital São José!) permaneça com um de seus quatro andares inteiramente vazio devido a uma obra que se arrasta há cerca de três anos, mesmo em uma administração como a atual a qual, justiça seja feita, teve o mérito de reduzir em 90% a dívida de 18 milhões de reais herdada de sucessivas administrações anteriores?
Sabemos que a única força real de que dispomos para reverter esta dramática situação vem exatamente de nossa população, motivo absoluto de nossa disposição em continuar sempre trabalhando contra esta omissão e displicência de nossos administradores públicos. E é para vocês, nossos pacientes e parceiros, que dedicamos as palavras restantes deste texto.
Queremos lhes dar uma boa notícia. Queremos lhes dizer que, da próxima vez que passarem ali, na avenida Getúlio Vargas, em frente àquele prédio em obras permanentemente inacabadas, saibam que ali dentro existe uma admirável e moderna instituição médica do qual todo joinvilense deve se orgulhar. Que, embora mantendo a tradição de garra e dedicação do nosso centenário Zequinha, este vibrante hospital universitário, cobiçado por jovens médicos de diversas regiões do País que enfrentam árduos concursos para ali realizar seu treinamento, executa mais de mil procedimentos por mês, muitos deles de alta tecnologia e complexidade como videocirurgias, transplantes, neurocirurgias, endoscopias avançadas e muitos outros. Que diversas equipes de médicos formados nos melhores centros do Brasil e do mundo realizam um trabalho de expressão nacional como no atendimento ortopédico ao politraumatizado, no dedicado e competente Serviço de Neurologia e no maior centro de tratamento de câncer, todos disponíveis pelo Sistema Único de Saúde para toda a região Norte de nosso Estado.
Não poderíamos ainda deixar de destacar nosso emblemático e dinâmico serviço de cirurgia, atuando em uma equipe unida formada por mais de duas dezenas de cirurgiões altamente qualificados que executam de forma competente um trabalho ao nível das melhores instituições cirúrgicas do Brasil. Liderados por médicos como Dr. Sérgio Ferreira, experiente cirurgião e incansável lutador pela causa da medicina pública e pelo Dr.Christian Garcia, atual coordenador do serviço, o qual se juntou a nós após uma bem sucedida experiência internacional na criação de um serviço de transplante de fígado na Itália, nosso grupo permanece realizando a cada dia um trabalho cujo volume e qualidade o destacam em toda a região Sul do País.
E é exatamente deste serviço de cirurgia que emerge um dos exemplos da capacidade do Hospital São José em se renovar e enfrentar as dificuldades de uma estrutura cronicamente deficiente. Conscientes de que a burocrática e lenta estrutura de financiamento público da saúde, além de insuficiente, é totalmente incompatível com necessidade de agilidade administrativa para a aquisição de equipamentos sofisticados e renováveis para a execução dos modernos procedimentos cirúrgicos, os cirurgiões buscam reproduzir os melhores exemplos de bem sucedidas experiências em instituições semelhantes à nossa.
Para fazer frente a este desafio e assegurar a permanente evolução de seu trabalho independentemente dos desmandos políticos em nossa cidade, os cirurgiões do Hospital São José criaram uma organização não-governamental capaz de estabelecer uma necessária parceria com a população joinvilense.
Esta ONG tem por objetivo estabelecer ligações sólidas com setores da dinâmica e bem sucedida economia de nossa cidade, possibilitando um trabalho em conjunto capaz de definir as metas e métodos para que possamos oferecer um atendimento cada vez mais digno ao povo de nossa cidade e de nosso Estado. Temos certeza de que esta nova estrutura, que já nasce contando com o apoio e desprendimento de importantes membros de nossa classe empresarial, irá contribuir de forma decisiva para manter cada vez mais brilhante a estrela do nosso querido Hospital São José como referência na alma do povo joinvilense.
*Mauro Pinho é cirurgião do Hospital Municipal São José, doutor em Medicina pela Universidade de Birmingham, Inglaterra. E-mail: mauro.pinho@terra.com.br PINHO*São José em números
Indicadores do ano de 2010
LEITOS DE UNIDADES ASSISTENCIAIS 167
LEITOS DE RETAGUARDA NO PRONTO SOCORRO 34
UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA 14
CENTRO DE TRATAMENTO DE QUEIMADOS 19
SERVIDORES 940
MÉDICOS 180
MÉDIA DE INTERNAÇÕES / MÊS (2010) 844
CONSULTAS AMBULATORIAIS ESPECIALIZADAS 85.909
APLICAÇÕES DE QUIMIOTERAPIA 13.705
CAMPOS DE RADIOTERAPIA 31.368
EXAMES LABORATORIAIS 372.375
EXAMES DE IMAGEM - RX 81.583
EXAMES DE IMAGEM - ULTRASSOM 6.420
EXAMES DE IMAGEM - ECOCARDIO 1.131
ELETROCARDIOGRAMA 3.222
CIRURGIAS REALIZADAS 10.817
PACIENTES ATENDIDOS NO PRONTO SOCORRO 38.047
FONTE: CENTRO DE CUSTOS HMSJ
MAURO
SAÚDE
“Onde a vida e a morte vivem um duelo constante”A jornalista Viviane Bevilacqua acompanhou um paciente na Emergência do Hospital Celso Ramos, em Florianópolis. Ficou no corredor por 24 horas e mais quatro dias num minúsculo quarto com outros dois pacientes. Nesta reportagem, ela narra a atuação competente de médicos e enfermeiros e descreve uma estrutura precária. Faltam remédios, leitos, equipamentos e até esparadrapo.
SAÚDE
Domingo na ambulância“Domingo, 18h45min.
A ambulância do Corpo de Bombeiros chega. Não demora nem 10 minutos. Em um tempo menor ainda estamos – a paciente e eu, que a acompanho – no interior da viatura. Luzes piscando e sirene ligada quebram a monotonia daquele início de noite de domingo na Avenida Beira-Mar Norte, em Florianópolis. Pergunto ao paramédico:
– Para onde vocês vão levá-la?
– Tudo indica que se trate de um problema neurológico. E, neste caso, a referência em Florianópolis é o Hospital Governador Celso Ramos, no Centro da cidade. É para lá que levamos quem está tendo um acidente vascular cerebral (AVC), derrame, isquemia e, também, acidentados que batem com a cabeça.
Claustrofóbica, me senti sufocada dentro daquela ambulância toda fechada, ainda mais sacolejando pelo caminho. A sorte é que a viagem foi curta. No trajeto, o bombeiro ia me fazendo perguntas sobre a paciente, acho que para passar para os médicos do hospital e adiantar serviço.
Entramos no Celso Ramos da maneira mais fácil que existe de ser atendido: na maca dos bombeiros (ou do Samu). Quem chega de ambulância tem prioridade de atendimento sobre os outros pacientes, que se aglomeram nos corredores da Emergência. Lá da porta, ouço uma voz mais alta e estressada, dizendo para uma moça que segura o braço e geme.
– Senhora, não adianta reclamar da demora. É assim mesmo, os pacientes em estado grave sempre serão atendidos primeiro. E teu problema, pelo que dá para ver, não é nada grave. Pode sentar e esperar a sua vez.
– Mas desde as 11h da manhã? São quase 8h da noite! – diz ela.
Não adianta nada a reclamação. Os pacientes não param de chegar, muitos deles em estado gravíssimo. Quase todos, vítimas de acidente de carro ou de moto.
O pessoal do Samu chega trazendo na maca um homem todo ensanguentado. Eles entram pelo portão de ferro localizado na lateral do prédio do hospital e pedem passagem. Vão desviando das pessoas, tirando fininho de outras macas que acomodam pacientes pelos corredores vão direto à sala principal da Emergência. Aliás, não é a sala principal. É a sala da Emergência. Acontece que os pacientes são tantos que qualquer cantinho vago precisa ser bem aproveitado: corredores, hall, salas de observação. Tudo virou Emergência.
Há gente para todo canto. Médicos e residentes dão consultas em pé, pacientes esperam encostados nas paredes a sua vez na fila, ou, então, ficam sentados em cadeiras de rodas ou deitados em macas, espalhadas pelos corredores. Acompanhantes tentam se acomodar na meia dúzia de cadeiras de plástico disponíveis, enfermeiras e auxiliares correm de um lado para outro. Puncionam uma veia aqui, trocam o soro ali. E saem, no meio do povo todo, buscando seus pacientes:
– Quem é João da Silva?
Um senhorzinho lá do fundo se apresenta. A enfermeira dá para ele um copo de café com três remédios dentro, e outro copo com água.
– Vamos ver se o senhor melhora agora. Já vai passar esta dor – ela diz, na tentativa de tranquilizá-lo.
Enquanto isso, do lado de fora do hospital, muitas pessoas chegam em busca de notícias de algum amigo ou parente internado, principalmente quando, entre os pacientes, há vítimas de acidente de trânsito, o que é muito frequente. Naquela primeira noite que estivemos lá, chegaram pessoas feridas em dois acidentes.
Emergência é uma muvuca. Gente demais, estrutura de menos. Mas presta um trabalho eficiente, onde salvar vidas faz parte da rotina.
Esta reportagem é como um recorte na vida do hospital. Durante alguns dias, nos mais diferentes horários, acompanhei o que acontecia na emergência do Celso Ramos. As histórias estão aqui. Os nomes, não sei. O que me interessava, enquanto permaneci lá dentro como acompanhante de paciente, era observar a rotina, a emoção, o medo, a esperança, o desespero, a cumplicidade, a frustração... Enfim, os sentimentos que afloram em um lugar como este – a sala de Emergência de um hospital –, onde a vida e a morte vivem um duelo constante.”
SAÚDE
Noite adentro no corredor onde de tudo acontece
“Chegamos na ambulância, mas em seguida nos separaram. Me chamaram numa salinha para fazer a ficha da paciente. Enquanto isto, um clínico iniciava os primeiros exames nela. Quem chega sozinho na ambulância dos bombeiros ou do Samu logo é atendido. A papelada fica para depois. Mas se há um acompanhante, ele primeiro precisa fazer o registro. Após os exames iniciais, a notícia que recebemos é de que teremos que passar a noite lá, já que a paciente ficará internada para fazer alguns exames mais complexos. Acho correto, precaução nunca é demais.
Lá pelas tantas, início da madrugada de segunda, cinco horas depois de chegarmos, começo a me impacientar. Quando será que vão tirá-la dessa maca aqui do corredor da emergência e interná-la? Só quando uma das enfermeiras do plantão cola um papelzinho na parede, ao lado da maca, com o nome da paciente, a idade dela e em qual especialidade médica ela se encaixa, é que caio na real: ela já está internada.
Vamos passar a noite no corredor da Emergência. Aqueles dois metros de parede, onde colaram o nome dela, é o nosso “minifúndio”. Do lado da maca, tem um espacinho vago. Acho uma cadeira plástica por ali, toda remendada com esparadrapo, e pego pra mim. Cadeira para acompanhante é artigo raro, disputada por todos. Levantou, perdeu. Há sempre alguém de olho na sua cadeira! Coloco a minha ao lado da cabeceira da maca e ali fico até o dia seguinte, sem pregar o olho.
Impossível dormir sentada num local iluminado onde, a todo instante, chegam mais feridos e doentes necessitando de atendimento. Já que não dá mesmo para descansar, melhor aproveitar o tempo, enquanto minha paciente tenta se ajeitar como dá naquela maca estreita (que é emprestada dos bombeiros), para saber o que está rolando por ali naquela noite, que, pelo jeito seria longa...
Chega a enfermeira para fazer um eletrocardiograma. Pergunto: o exame vai ser feito aqui no corredor?
– Tá tudo cheio, minha filha. A gente coloca uma toalhinha por cima dela para tapar o peito.
A situação por lá está tão braba que os enfermeiros já desenvolveram técnicas para atender os pacientes, no meio da multidão, com um pouquinho de privacidade.
O aparelho de fazer eletro também merece registro. Parece instrumento de tortura, de tão antigo. Mas, neste caso, o que importa é que funcione.
Naquela madrugada, mesmo com tanta gente para atender, minha paciente fez tomografia, exames de sangue e foi examinada várias vezes pelos neurologistas de plantão. As equipes de médicos e enfermeiros da Emergência trabalham muito – e bem. Estão acostumadas a atuar sob pressão. Acho que não vi um profissional lá dentro queixando-se da carga de trabalho.
Na maca do lado da nossa estava um jovem que tinha quebrado a perna à tarde, jogando futebol. Já tinha tomado sedativo, mas nada aplacava a dor. Ele implorou por mais remédio, e a enfermeira argumentou:
– Eu já disse que o mais forte, o Tilatil, a gente está em falta. O outro já te dei, mas osso quebrado dói mesmo.
E ele gemia alto. Até que o chamaram para colocar o osso no lugar. Com uma cara de medo, ele entrou numa salinha, sentado em uma cadeira de rodas. Antes disso, a enfermeira recomendou à namorada dele:
– Se um bombeiro ou alguém do Samu quiser levar esta maca embora, não deixa. Precisamos dela aqui na Emergência. Diz que teu namorado já volta.
O jovem saiu de lá, mais tarde, aliviado, quase sorrindo. E não fiquei sabendo se ele iria ou não, afinal, precisar de cirurgia. Pela cara dele, acho que não.
Noutra maca estava uma jovem que havia sofrido um acidente de automóvel na tarde de domingo, em São Pedro de Alcântara. O veículo onde ela passeava com a família foi atingido por um carro desgovernado, que bateu de frente. Todos se machucaram. Os pais e a avó foram levados para o Regional de São José, o sobrinho para o Infantil Joana de Gusmão e ela para o Celso Ramos, porque havia batido com a cabeça e precisava ficar 24 horas em observação. A moça, completamente confusa, havia perdido temporariamente a memória recente. Passou a noite inteira perguntando a mesma coisa:
– Onde estou? Que aconteceu? E o meu pai? E a minha mãe? E a minha vó? E o meu sobrinho? Que acidente? Onde estou...
O acompanhante dela, com uma paciência que eu nunca vi igual, repetia a história sem parar. Vinte e quatro horas depois, já lúcida – embora ainda não lembrasse de detalhes do acidente – ela foi liberada.
Nesta mesma noite, o motorista que bateu no carro dela estava sendo operado e iria para a UTI, alguns lances de escada acima de nós. O estado dele era grave, segundo ouvi pelos corredores.
Numa cadeira de rodas, no canto da Emergência, um menino franzino, que não aparentava mais do que 15 anos de idade, gemia baixinho. Do seu pé escorria sangue. Contou que havia recebido uma pedrada e esperava atendimento. Vi ele ali por volta das 22h. Mais tarde, o encontro dormindo, deitado sobre três cadeiras, em um corredor do setor de raio X. Às 3h ouço um enfermeiro chamando por ele. O médico, enfim, teria tempo de examinar o pé do garoto.
As coisas começavam a se acalmar na Emergência, na madrugada, quando chega uma moça com uma parte do rosto ensanguentada, short e um sapato de salto altíssimo. Muito nervosa, só perguntava para todos:
– Como está minha cara? Tô feia né? Essa era a maior preocupação dela.
Depois, começou a dizer que iria embora, que queria a bolsa e o celular que tinham tirado dela. Destratou médicos e enfermeiros, criou caso, xingou, chorou. O tempo todo ela gritava:
– Quem roubou minha bolsa? Alguém fala comigo! Vou fugir deste lugar!
Os comentários eram de que ela teria batido com o carro em um poste, na região da Lagoa da Conceição, e que havia bebido demais. Também ficou 24 horas internada, em observação, e só se acalmou com a chegada do namorado.
Uma enfermeira me pede ajuda na hora de coletar sangue da minha paciente. Ela retira o líquido, a agulha e me dá um algodão e diz:
– Tampa ali e fica pressionando, pra não sangrar nem formar hematoma.
Ok, fico segurando enquanto espero que ela vá buscar o esparadrapo ou o band-aid para colocar no lugar da punção. Ela não volta. Aí, reparo que a prática é esta. Só aperta um pouco o local da punção e pronto. Esparadrapo é luxo por aqui.
Histórias não faltam, novos casos aparecem, hora após hora. Na Emergência é sempre dia. As luzes fluorescentes e o eterno entra e sai fazem a gente esquecer se é dia ou noite. Qualquer um que fica muitas horas lá dentro perde a noção do tempo. O que rege o horário são as refeições dos pacientes – às 8h o café, ao meio-dia o almoço, às 16h um chá com bolachas ou pão, às 19h30min o jantar e por volta das 22h um lanchinho.
Amanhece a segunda-feira. Não para de chegar gente. Tem fila do lado da Emergência, e as pessoas têm algo em comum. São pacientes que estão ali para tirar o gesso. Parecem um exército de engessados: pés, mãos, cotovelos, cabeças, pernas, dedos. Cada um com sua história. A sala de gesso é a mais disputada. O barulho da serra cortando o gesso se espalha por toda a Emergência, assim como o cheiro de café. Mais um dia começa. E promete ser agitado.
O paciente almoça no corredor, precisa segurar a bandeja no colo. Se tem um acompanhante para lhe ajudar, ótimo. Se não, cada um se vira como pode. Comer olhando outras pessoas sangrando, chorando ou gemendo de dor é difícil. Não há fome que resista.
Os acompanhantes que desejarem, podem almoçar e jantar no refeitório do hospital, que serve também os funcionários. São alguns minutos em que você nem percebe que está num hospital. A comida é boa e o ambiente, agradável.”
SAÚDE
Um cantinho melhor é sorte
“No fim da tarde de segunda, depois de 24 horas de Emergência, descobrimos que minha paciente terá que ficar internada para fazer mais alguns exames.
– Ok, ficamos. Quantos dias, doutor?
– Olha, se tudo der certo, liberamos até o final da semana.
– E para que ala ela vai?
– O hospital está lotado. Ficará aqui mesmo na Emergência.
Ah não, um dia e uma noite ainda dá. Mas cinco noites? Tentamos uma transferência para o Hospital de Caridade. Está tudo lotado lá também. Falo com a enfermeira e, por sorte, consigo um cantinho numa das salas de observação da Emergência, onde já estão outras duas senhoras. Empurramos a maca dela para lá e a minha cadeirinha plástica, que virou amiga inseparável. Agora, sim, estamos melhor acomodadas, com um pouco mais de silêncio para o doente descansar.
Nestas horas a gente se dá conta de que se acostuma com tudo na vida. Para quem ficou 24 horas num corredor gelado e com várias macas e doentes sendo atendidos, um terço de um quartinho e um banheiro por perto, mesmo que comunitário, passam a ser um luxo. E é daqui deste quartinho, sentada na cadeira de plástico amarrada com esparadrapo (a cadeira, não eu), que escrevo este texto.
SAÚDE
Dias na maca, enfim, a cama
Quando o barulho diminui por aqui é sinal de que a madrugada já está chegando. Tem horas, durante o dia, que não dá sequer pra sair do quartinho de observação onde estamos. É só abrir a porta para deparar, a poucos centímentos de distância, com um paciente sendo atendido, ou esperando a chegada dos médicos. O cheiro no corredor é estranho, mistura de comida, remédio e desinfetante.
Neste quarto aqui estão hospedadas três pacientes mulheres, com suas acompanhantes. E há um banheiro. Ontem bateram à porta. Uma auxiliar de enfermagem estava trazendo um rapaz, numa cadeira de rodas. Ela disse:
– Esse banheiro aqui serve a todos os pacientes da Emergência, e quando precisar, eles virão aqui.
Depois, mais tarde, trouxeram um presidiário – algemado pelos pés – que já está aqui há dois dias, acho que fazendo exames. Policiais fazem a segurança. Outras pessoas foram chegando ao longo das horas.
Sem conseguir dormir, aproveito a madrugada para caminhar (a Emergência é no subolo 2), e encontro, num corredor largo, umas 10 macas, em fila indiana, uma encostada na outra. São todos pacientes homens que, pelo jeito, já fizeram amizade. Falam sobre futebol, riem alto. Parecem um grupo de amigos, de tão íntimos que se tornaram. Pergunto a um deles o que fazem lá.
– Esperando por uma cirurgia ortopédica. Já estou aqui há mais de 10 dias – contou um.
Uma enfermeira explica que a situação permanecerá caótica até agosto, quando, então, deverá ser inaugurado o novo andar da Emergência. Com a ampliação, a situação deve melhorar. Pelo menos esta é a esperança de todos que trabalham ou são atendidos na Emergência e na Ortopedia, que conta com um corpo clínico excelente, mas uma estrutura precaríssima. De nunca mais esquecer os dias passados aqui.
Depois de 24 horas no corredor e mais 72 horas compartilhando com outras duas pacientes e duas acompanhantes um minúsculo quartinho de observação, na mesma unidade, quinta-feira fomos, finalmente, trasferidas para o sétimo andar do hospital, onde ficam internados os pacientes da Neurologia.
A mudança é grande. Pelas circustâncias, parece que estamos num hotel cinco estrelas! A minha paciente, enfim, dormirá pela primeira noite em uma cama, depois de cinco dias na maca. E eu? Não tive a mesma sorte... Do lado da cama dela, só uma cadeirinha de plástico. Depois de mais uma noite insone, a notícia que tanto aguardávamos: os médicos – a quem agradecerei para sempre pela competência – vão nos dar alta no final da tarde.
Nem conseguimos ficar muito felizes, porque a senhora com a qual repartimos esta única noite de quarto, e com quem conversamos animadamente pela manhã, teve uma parada cardíaca de repente, bem na nossa frente, e não resistiu. Enquanto saíamos do hospital para retomarmos nossa vida aqui fora, aquela senhora simpática lá de Biguaçu era levada para o necrotério. Deve ser verdade que cada um tem sua hora certa de partir.
A Emergência do Hospital Celso Ramos foi fechada para reformar em 14 de abril do ano passado. A previsão era entregar a obra em seis meses com capacidade de atendimento 30% maior que dos centros cirúrgicos. O investimento previsto era de R$ 2 milhões. Depois de concluída vai atender 350 pacientes por dia.”
Colunista Cacau Menezes
Tá igual ao SUS
Não foi à toa que os médicos que prestam serviços aos planos de saúde e operadoras paralisaram as atividades na última quinta-feira, protestando contra as condições a que são submetidos, e que prejudicam diretamente os pacientes. Uma das reclamações é o baixo valor que recebem pelas consultas e procedimentos que realizam. Isso deve ser um dos motivos pelos quais, por aqui, os pacientes (é preciso mesmo ser muito “paciente”) aguardam por dois ou mais meses para conseguir consultar com os profissionais que desejam.
OBRAS
.
A Secretaria da Saúde foi dirigida por um correligionário de Pavan, deputado Dado Cherem, que relatava conquistas e avanços. O novo governo tem revelado realidades chocantes nos hospitais públicos da Grande Florianópolis. Leitos fechados, obras que nunca terminam, falta de pessoal, emergências precárias, alimentos deteriorados, etc, etc.