Relatório do Instituto de Direitos Humanos da International Bar Association Relatório do Instituto de Direitos Humanos da International Bar Association Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 apoiado pelo Open Society Institute Índice Resumo Executivo 5 Capítulo acesso à Justiça durante a Prisão Provisória – Uma Crise Crescente 7 Introdução 7 Prisão provisória, acesso à representação legal e o sistema de justiça criminal 8 Violações de direitos humanos no sistema penitenciário brasileiro: violência, superlotação e a cultura das organizações criminosas 11 Relatando deficiências sistemáticas: uma sensação de déjà vu? 15 Atitudes políticas e sociais com vistas à reforma penal 18 Capítulo 2 Proteção dos direitos Humanos no Brasil – “Para inglês Ver?” 21 Obrigações nacionais e internacionais de direitos humanos : teoria e prática 21 Proteções dos direitos humanos no sistema de justiça criminal brasileiro 25 Contexto histórico 29 Ditadura e a transição para a democracia 32 Direitos humanos, criminalidade e discurso político 33 Medo do crime e enfraquecimento do Estado de Direito: um círculo vicioso 37 Capítulo 3 Estrutura institucional, Política e Constitucional do Brasil 41 Estrutura Constitucional e Política 41 A redação da Constituição de 1988 43 O judiciário brasileiro 45 Promotores públicos 49 Defensores públicos 53 Prisões e reforma penal 56 Capítulo 4 Encontrando uma saída 61 A agenda da reforma 61 Fortalecimento das instituições da Justiça: desafios e respostas 62 A necessidade de um policiamento mais eficaz 65 “Soluções práticas, de origem doméstica” 66 Encontrando uma saída 69 Resumo Executivo O número de presos e detidos em regime de prisão provisória no Brasil está crescendo rapidamente e há um entendimento generalizado de que a justiça criminal e o sistema penal em vigor são disfuncionais. Em novembro de 2009, o Conselho Nacional de Justiça anunciou que, do total de casos que havia revisado até então, um em cada cinco presos provisoriamente estava irregularmente encarcerado, o que sugere que o problema seja extremamente sério em todo o país. O sistema penal e de justiça criminal brasileiros foram objeto de inúmeros relatórios de especialistas denunciando suas deficiências, além de algumas tentativas ad hoc para lidar com diferentes aspectos de seus problemas. Além disso, o sistema também parece violar as próprias leis do Brasil e as disposições constitucionais de proteção dos direitos humanos. Apesar de se comprometer formalmente a uma ampla proteção dos direitos dos seus cidadãos, o governo brasileiro afirma que a hostilidade dos seus próprios funcionários e de uma grande parte da opinião pública com relação a tais direitos é um dos principais impedimentos para a reforma da justiça criminal. A primeira seção do presente relatório apresenta um resumo geral de vários relatórios e estudos recentes de órgãos de controle das Nações Unidas, organizações internacionais e nacionais de direitos humanos sobre as violações de direitos perpetradas por e no sistema penal brasileiro. A tendência geral no sistema de justiça criminal brasileiro é a de condenar mais acusados à prisão do que estão sendo libertados, o que tem excedido ainda mais a capacidade do sistema penal, já superlotado, o que parece destinado a continuar. Um enorme acúmulo de casos foi gerado, levando ao aumento de atrasos no sistema judicial, sendo que mais de 80% dos presos não podem pagar um advogado. Devido à incompetência burocrática ou falhas sistêmicas, muitas pessoas estão presas irregularmente, passam anos em prisão provisória ou permanecem na prisão após o termino do respectivo período. A superlotação extrema, condições sanitárias precárias, violência entre organizações criminosas e motins deterioram o sistema prisional, onde os maus-tratos, incluindo espancamentos e tortura, são comuns. Embora o governo tenha anunciado várias reformas para enfrentar os problemas identificados, em termos práticos, pouco mudou na última década. Isto sugere que as falhas são profundas e sistêmicas, e, portanto, precisam ser abordadas de uma forma holística. A seção descreve a proteção formal dos direitos humanos no sistema de justiça criminal brasileiro e também explica porque essas garantias permanecem, em grande parte, no papel. Compreender o porquê o Estado brasileiro parece violar tantos dos direitos humanos garantidos em suas próprias leis e Constituição requer que se faça uma certa descrição do contexto histórico-político em que a relação entre eles se desenvolveu. Esse contexto tomou uma importância crítica durante a transição da ditadura para a democracia, e seu legado continua a influenciar fortemente a sociedade e política brasileiras, com muitos brasileiros associando a transição para a democracia ao grande aumento de crimes violentos que tem ocorrido no país. A terceira seção trata das instituições constitucionalmente incumbidas de proteger os direitos humanos dentro do sistema de justiça criminal brasileiro. Embora a atual Constituição do Brasil e muitas de suas leis forneçam proteção mais ampla, muitas vezes as instituições encarregadas de garantir esses direitos não conseguem fazê-lo. Isto pode ser porque muitas destas instituições Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro corporativistas permanecem em grande parte inalteradas desde a era da ditadura e procuraram proteger-se da fiscalização e controle democráticos. A última seção descreve algumas das iniciativas locais que têm sido desenvolvidas para aproximar a justiça das pessoas no Brasil. Uma estratégia de reforma eficaz deve lidar com a questão da reforma da justiça criminal de forma abrangente. Os problemas relativos ao acesso à justiça em prisão provisória não podem ser tratados isoladamente do contexto da crise do sistema de justiça criminal brasileiro e do problema mais amplo de combate à criminalidade na sociedade. Insistir na tentativa de reparar uma área específica, seja através de novas leis ou da criação de novas instituições, poderia agravar a situação, adicionando-se novas camadas de burocracia e confusão a um sistema já disfuncional. Este relatório argumenta que um esforço maior deve ser destinado a fazer com que as partes existentes do sistema trabalhem melhor em conjunto e incentivar o desenvolvimento de uma reforma incremental, de origem doméstica e liderada pela comunidade. A Defensoria Pública é o órgão constitucionalmente incumbido de prestar assistência jurídica gratuita àqueles que dela necessitam, e o Instituto de Direitos Humanos (Human Rights Institute) da International Bar Association apóia firmemente os apelos que têm sido feitos para que esta seja reforçada. Há também uma variedade de outros grupos que tentam elaborar respostas à atual crise no sistema de justiça criminal. Apoiar o seu engenho criativo para “encontrar uma forma de contornar os obstáculos que existem” deve ser uma parte essencial do processo de reforma. Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 CaPÍTULo 1 aCESSo À JUSTiÇa dURanTE a PRiSÃo PRoViSÓRia – Uma CRiSE CRESCEnTE introdução 1.1 A população de presos no Brasil em setembro de 2009 era de 472.482, tornando-a a quarta maior do mundo.1 Destes, 264.940 eram presos condenados e 207.542 – ou 44 por cento – estavam sendo mantidos em regime de prisão provisória. O número de presos no Brasil está aumentando rapidamente e a proporção de detentos em prisão provisória também está crescendo.2 Em 1995, havia em torno de 106.512 presos condenados e 42.248 detentos em prisão provisória.3 Isso significa que o número total de presos mais do que triplicou, e o número de detentos em prisão provisória mais do que quadruplicou nos últimos 14 anos. 1.2 Isso tem sobrecarregado a capacidade do sistema penal brasileiro, já superlotado. De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional do governo Brasileiro (DEPEN), em junho de 2008, o número de pessoas sendo encarceradas excedeu a capacidade projetada para as prisões do Brasil em 40 por cento, e o número de presos estava aumentando em aproximadamente 3.000 por mês.4 Apesar de haver um programa significativo de construção de penitenciárias em andamento, isso não aliviou o problema. Na realidade, tal programa pode estar incentivando o crescente uso da prisão provisória e a distribuição de mais e longas penas privativas de liberdade por parte dos juízes. A tendência geral do sistema de justiça criminal brasileiro é de condenar à prisão um maior número de réus comparativamente aos que estão sendo postos em liberdade, portanto, num futuro próximo, o número de presos está fadado a continuar crescendo. 1.3 Os tribunais também estão sobrecarregados com o número de casos com os quais têm de lidar. Há um grande acúmulo de processos, o que tem levado a atrasos crescentes na condução dos julgamentos. É uma prática rotineira para os juízes ouvir vários casos criminais em um único dia, o que pode afetar significativamente a qualidade de seus julgamentos e comprometer os direitos dos réus. Em uma tentativa de lidar com esse acúmulo de processos, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ criou uma iniciativa ad hoc chamada mutirão. Coordenado por uma pequena equipe 1 Números fornecidos pelo Conselho Nacional de Justiça, O Sistema Prisional Brasileiro, CNJ, 25 de novembro de 2009. 2 De acordo com um relatório do governo brasileiro apresentado a um órgão de Revisão de Direitos Humanos das Nações Unidas em março de 2008, a população prisional era de 420.000, dos quais cerca de 122.000 estavam sendo mantidos em prisão provisória. Ver relatório nacional apresentado em conformidade com o parágrafo 15(a) do anexo à Resolução 5/1 do Conselho de Direitos Humanos, Brasil, Grupo de Trabalho sobre a Revisão Periódica Universal, Primeira Sessão, Genebra, 7-18 de abril de 2008, A/HRC/WG.6/1/BRA/1, 7 de março de 2008, par. 61. De acordo com um relatório do Ministério da Justiça, no mesmo ano, o número total era de 440.000. Ver o Ministério da Justiça / DEPEN, INFOPEN. (2008) http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRNN.htm. Uma vez que se estima que o número total esteja aumentado a uma taxa de cerca de 3.000 por mês, todos estes números são amplamente coerentes. 3 Os indivíduos detidos sob o regime da prisão preventiva enquadram-se em uma dentre quatro categorias: (i) detentos que foram formalmente acusados e estão aguardando o início do julgamento; (ii) detentos cujo julgamento já começou, mas ainda tem que chegar a uma conclusão, por meio da qual o tribunal determina sua culpa ou inocência; (iii) detentos que foram condenados mas não sentenciados; e (iv) detentos que foram condenados em primeira instância, porém recorreram de suas sentenças ou estão dentro do prazo legal para fazê-lo. 4 Ver Relatório do Relator Especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, Sr. Philip Alston, Missão ao Brasil, A/HRC/11/2/Add.2 futuro, 28 de agosto de 2008, par. 42. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro baseada em Brasília, o mutirão é composto por grupos de juízes de diferentes regiões reunidos em um único estado para reexaminar seus casos. O objetivo é percorrer todos os 27 estados brasileiros, priorizando os problemas mais graves. Os mutirões são logisticamente difíceis de organizar porque os mesmos demandam a reunião de grupos de juízes, promotores, defensores e outros advogados em um estado particular por um certo período de tempo. Eles também distorcem o trabalho existente do judiciário e, por sua própria natureza, só podem ser uma solução imediata ao problema em apreço. Ao mesmo tempo, essa iniciativa tem revelado a extensão da crise dentro do sistema de justiça criminal brasileiro. Prisão provisória, acesso à representação legal e o sistema de justiça criminal 1.5 Em novembro de 2009, o CNJ anunciou que, após examinar 83.803 casos, os mutirões libertaram 16.466 pessoas que estavam presas irregularmente.5 Tal número equivale a quase 20 por cento do volume total de casos por eles examinados, ou um em cada cinco presos provisoriamente, sugerindo que o problema é extremamente sério em todo o país. Outros 27.644 detentos foram considerados mantidos em níveis de segurança inadequados. Os mutirões descobriram centenas de indivíduos que haviam passado muito mais tempo presos provisoriamente do que eles poderiam ter passado como presos condenados. Uma pessoa tinha passado 11 anos em prisão provisória e os mutirões encontraram muitas que estavam há 5 ou 6 anos na mesma condição. Outros tinham cumprido integralmente suas sentenças, mas não haviam sido libertados ainda devido à incompetência burocrática. No estado da Bahia o mutirão descobriu que, enquanto as autoridades prisionais registravam uma população de presos entre 10-11.000 em janeiro de 2009, havia, na verdade, em torno de 15.000 pessoas em centros de detenção.6 A razão para tais irregularidades será discutida mais adiante, porém elas sugerem que uma proporção significativa das pessoas presas no Brasil no momento não deveriam estar ali. Isso é uma violação fundamental do direito humano à liberdade. 1.6 Uma análise do padrão de prisão provisória em cinco cidades brasileiras realizada por Fabiana Oliveira Barreto, uma promotora pública de Brasília, revelou que os tribunais estão violando sistematicamente a presunção de inocência, que é um dos princípios relativos à prisão provisória no qual está baseado o sistema de justiça criminal brasileiro. Ela descobriu que, entre 2000 e 2004, juízes estavam rotineiramente encarcerando um grande número de pessoas acusadas de furto (subtração de algo sem o uso de força ou violência) apesar de ser este um crime de menor gravidade. Em alguns tribunais, mais de um terço das pessoas detidas sob a acusação de tal crime tinham passado mais de 100 dias privadas de liberdade, e muitas passaram mais tempo presas provisoriamente do que passariam cumprindo a pena eventualmente recebida.7 O estudo mostrou que o uso da prisão provisória variou significativamente em diferentes partes do país e parece estar relacionado a uma série de fatores subjetivos, tal como a atitude de certos juízes. Enquanto em Porto Alegre, no sul do Brasil, o índice de encarceramento de pessoas presas em flagrante para esse crime foi de cerca de 30 por cento, tal índice subiu para 90 por cento na cidade de Belém, no norte do Brasil. 5 CNJ, Dados atualizados do mutirão carcerário, 05 de novembro de 2009. 6 Entrevistas conduzidas com autoridades do CNJ em novembro e dezembro de 2009. 7 Fabiana Costa Oliveira Barreto, Flagrante e Prisão Provisória em casos de furto, da presunção de inocência à antecipação de pena, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2007. Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 1.7 De acordo com Rogério Schietti Machado Cruz, ex-Procurador Geral do Distrito Federal, os juízes estão fazendo uso excessivo da prisão provisória porque o sistema de justiça criminal é inapto para processar casos de forma eficiente.8 Ele afirma que a grande e desnecessária morosidade dos julgamentos em 1ª e 2ª instância no Brasil tem gerado um aumento da pressão pública para o encarceramento de indivíduos suspeitos de atividades criminosas, mesmo antes de que eles tenham sido julgados e condenados. Isso tem levado os juízes a abandonarem a presunção de inocência, apesar de sua proteção pela Constituição Federal como uma garantia fundamental do sistema de justiça criminal brasileiro. Ambos os estudos afirmam que os juízes estão usando os amplos poderes discricionários que a lei brasileira lhes confere com o intuito de decretar a prisão provisória de certas classes de pessoas, em resposta a ansiedades e preconceitos da sociedade acerca de certos tipos de crimes. 1.8 Uma pesquisa realizada entre 1999-2000 pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa a partir de 6.500 casos de roubo no Estado de São Paulo mostrou que em cerca de 98 por cento de todos os casos, os advogados de defesa não solicitaram a libertação de seus clientes presos em flagrante.9 Os advogados de defesa fizeram pedidos de liberdade provisória em nome de seus clientes em apenas 23,8 por cento dos casos, após a conlusão do inquérito policial inicial, mas antes que o julgamento completo tivesse começado. A pesquisa também salientou que os advogados de defesa nem sequer estavam presentes durante 21,8 por cento dos casos em que seus clientes fizeram sua primeira aparição diante de um juiz - apesar do fato de que isso tornaria nulos e sem efeito todos os atos processuais subsequentes. Em 96 por cento dos casos analisados, os réus foram posteriormente condenados e, em 77 por cento, foram condenados a cumprir pena em regime fechado. 1.9 No entanto, o sistema de justiça criminal brasileiro parece ser tão ruim em punir os culpados quanto em proteger os inocentes. Embora seja impossível obter dados atuais precisos, estima-se que dezenas de milhares de pessoas condenadas à prisão, na realidade, não cumprem as suas penas devido à lentidão dos processos judiciais, à ineficiência administrativa dentro do sistema e aos baixos padrões de segurança.10 Os direitos formais que a lei penal brasileira confere aos suspeitos de crimes proporcionam amplas oportunidades de desafiar o sistema àqueles que podem pagar advogados particulares. Embora esses direitos sejam, teoricamente, garantidos a todos os presos, e frequentemente citados por aqueles que defendem uma abordagem “mais dura” para a prevenção do crime, eles são, na prática, negados a (with accent)grande maioria. Mais de 80 por cento dos presos no Brasil não podem se dar ao luxo de contratar um advogado.11 Como será discutido mais adiante neste relatório, a garantia constitucional de que todos os acusados de um crime têm direito à assistência jurídica é constantemente violada. 1.10 Em outubro de 2009, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) publicou uma pesquisa de Maria Tereza Sadek, professora de ciência política da Universidade de São Paulo, que mostrou que a má gestão era um problema tão grande dentro do judiciário brasileiro quanto a falta recursos.12 Baseando-se nos arquivos do CNJ referentes a casos de 2004 - 2008, o relatório 8 Rogério Schietti Machado Cruz, Prisão Cautelar: dramas, princípios e alternativas, Lumen Juris Editora, 2006. 9 Decisões judiciais nos crimes de roubo em São Paulo, Instituto de Defesa do Direito de Defesa e Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, sem data. 10 Esta estimativa advem de entrevistas realizadas durante a pesquisa para este relatório com o Ministério da Justiça e o Conselho Nacional de Justiça no Brasil. 11 Anistia Internacional, Brasil: “Ninguém aqui dorme em segurança”: Violações de direitos humanos contra detentos, Índice AI: AMR 19/009/1999, 22 de junho de 1999. 12 JusBrasil Noticias, “Estudo de Maria Tereza Sadek, encomendado pela AMB, revela realidade do Judiciário brasileiro”, 29 de outubro de 2009. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro demonstrou que os tribunais com orçamentos maiores, ou menor volume de casos, não estavam necessariamente tratando os casos de forma mais eficiente. Ela descobriu que havia uma falta de planejamento financeiro adequado, e que, frequentemente, os fundos não eram gastos em áreas de serviços essenciais. Os juízes tinham pouco controle sobre as despesas em seus próprios tribunais, e a maioria nem mesmo conhecia a discriminação financeira de seus próprios orçamentos. Sadek argumentou que o sistema judiciário brasileiro precisava de modernização e maior profissionalismo, e que deveria incluir a formação em gestão financeira. 1.11 O sistema penal é também intrinsecamente elitista com relação a determinadas classes sociais de presos, como aqueles que tenham obtido um diploma universitário ou ocupado certos cargos do funcionalismo público - com direito a celas separadas e transporte diferenciado do restante da população carcerária. A frase de um ex-presidente brasileiro “para os meus inimigos a lei, para os meus amigos qualquer coisa” é amplamente considerada como um lema informal da justiça criminal no Brasil.13 Os brasileiros têm uma percepção muito negativa de seu sistema judiciário; de acordo com pesquisas de opinião pública, eles o responsabilizam pela associação entre injustiça e impunidade.14 A opinião de que “a polícia prende os criminosos e os juízes os deixam ir” é um preconceito bastante difundido em alguns setores da sociedade, e o uso crescente da prisão provisória por parte de alguns juízes pode, em parte, ser uma resposta a esta pressão. A desconfiança da eficácia do sistema judicial também pode ser uma das razões pelas quais a polícia brasileira mata ao invés de prender tantos suspeitos.15 1.12 A manutenção de pessoas em prisão provisória também significa que elas não se beneficiam da progressão de regime como ocorre com a maioria dos presos condenados, que deveria levá-los a um regime mais aberto. Devido ao excesso da população prisional, muitos presos em regime de prisão provisória estão detidos em delegacias e carceragens,. Essas não são concebidas como prisões, e raramente são equipadas com instalações adequadas para manter indivíduos presos por longos períodos, o que aumenta o risco de que os presos sejam submetidos a maus-tratos.16 1.13 As organizações criminosas do Brasil recrutam a maioria de seus membros na prisão e organizam muitas de suas atividades a partir daí. O grande aumento atual no número de pessoas que estão detidas em prisão provisória, frequentemente apenas acusadas de crimes relativamente menores, é susceptível de fortalecer a influência dessas organizações e dificultar o controle das prisões. Custa dinheiro manter pessoas presas, e esse dinheiro gasto em prisões não pode ser usado no desenvolvimento de programas alternativos, que têm se mostrado mais baratos e mais eficazes na redução dos índices de criminalidade. O encarceramento de pessoas por crimes relativamente menores também tem se mostrado contraproducente e mais susceptível de transformá-las em reincidentes do que as condenações cumpridas em liberdade. Existem, portanto, fortes razões utilitárias para tentar reduzir o número de pessoas que são encarceradas no Brasil e para usar a prisão apenas como um último recurso. 13 Fiona Macaulay, “A Democratização e o Judiciário”, em Maria DiAlva Kinzo e James Dunkerley, O Brasil desde 1985: economia, política e sociedade, Instituto de Estudos Latino-Americanos, 2003, p.93. 14 Uma Pesquisa da Associação dos Magistrados Brasileiros mostra que os cidadãos não têm fé no Judiciário e o consideram corrupto, lento e misterioso. AMB, Pesquisa qualitativa “Imagem do Poder Judiciário”, Brasília, 2004, p. 61. 15 Ver, por exemplo, Força Legal: Violência Policial e Segurança Pública no Rio de Janeiro e em São Paulo, Human Rights Watch, 2009. 16 Uma visita a uma cadeia da polícia no Rio, durante a pesquisa, mostrou condições que se encaixam no padrão geral aqui descrito em maior profundidade. 10 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 1.14 A detenção de um número crescente de pessoas que são apenas acusadas de delitos menores - e muitas vezes sem ter sido consideradas culpadas por eles - também está agravando o problema de excesso da população prisional. Dadas as péssimas condições nas prisões brasileiras, isso deve ser um motivo de alarme. Como será discutido mais adiante, há graves problemas sistemáticos na gestão do sistema penal no Brasil. Violações de direitos humanos no sistema penitenciário brasileiro: violência, superlotação e a cultura das organizações criminosas 1.15 Inúmeros relatórios de organismos de controle das Nações Unidas e de organizações internacionais de direitos humanos chamaram a atenção para os problemas no sistema de justiça criminal brasileiro, em geral, e para o uso crescente da prisão provisória, em particular.17 Em 2007, a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, por exemplo, observou que o uso generalizado da prisão provisória demandava atenção especial.18 O Comitê contra a Tortura da ONU manifestou preocupação com os longos períodos de prisão provisória.19 O Comitê de Direitos Humanos da ONU também condenou as “condições desumanas” de detenção nas prisões e os atrasos nos procedimentos judiciais.20 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos concedeu duas medidas cautelares contra o Brasil referentes ás condições das prisões, uma em 2009 e outra em 2007.21 Varios relatórios também descreveram violações em detalhe. No relatório de uma visita ao Brasil em 2007, por exemplo, o Relator Especial da ONU sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, Philip Alston, afirmou que o índice de ocupação das prisões era, frequentemente, três ou mais vezes maior do que a real capacidade projetada para as instalações, e que o número de presos mortos sob a custódia do Estado era um “problema grave”.22 Ele observou em seu relatório preliminar que: “A freqüência de rebeliões e mortes nas prisões é o resultado de uma série de fatores. A superlotação nas prisões contribui para a agitação dos internos e a falta de capacidade dos agentes prisionais em efetivamente impedir que armas e telefones celulares sejam levados para as prisões. Os baixos níveis de educação e oportunidades de trabalho também contribuem para a instabilidade, assim como o fracasso em garantir que os presos sejam transferidos do regime fechado para o aberto quando eles têm o direito de assim fazê-lo. Atrasos nos processos de transferência somados à violência dos agentes e às condições de pobreza estimulam o crescimento de organizações criminosas nas prisões, o que pode justificar a sua existência à população prisional em geral, na medida em que afirmam agir em nome dos presos para obter benefícios e prevenir a violência”. 1.17 O Relator Especial observou também que: “Há muitos órgãos com o poder de investigar as condições das prisões, mas nenhum deles 17 Compilação preparada pelo Alto Comissariado de Direitos Humanos, de conformidade com o parágrafo 15(b) do anexo à resolução 5/1 do conselho de direitos humanos, Grupo de Trabalho sobre a Revisão Periódica Universal, Primeira Sessão, Genebra, 7-18 de abril de 2008, A/HRC/WG.6/1/BRA/2, 31 de março de 2008, par. 15. 18 Comunicado de Imprensa UN OHCHR, 06 de dezembro de 2007. 19 Observações Finais do Comitê Contra a Tortura, Registros Oficiais da Assembléia Geral, Quinquagésima-Sexta Sessão, Suplemento Nº 44 (A/56/44), par. 119 (c). 20 Observações Finais do Comitê de Direitos Humanos: Brasil, CCPR/C/BRA/CO/2, par. 16. 21 Medidas Cautelares IACHR 2009, PC 236/08 – Pessoas Privadas de Liberdade na Penitenciária da Polinter-Neves, Brasil; Medidas Cautelares IACHR 2007, par. 13, Adolescentes na Cadeira Pública do Guarujá. 22 Relatório preliminar do Relator Especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, Adendo de Philip Alston, Missão ao Brasil, 4-14 de novembro de 2007, Doc. das Nações Unidas A/HRC/8/3/Add.4, 14 de maio de 2008, par. 16. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 11 faz seu trabalho adequadamente. Essa falta de controle externo permite que as condições precárias e as violações continuem. A condição imposta, em alguns lugares, para que o indivíduo identifique-se como pertencente a uma facção criminosa facilita o crescimento da identificação com organizações criminosas e de atividades relacionadas com as mesmas. Como certa incidência das facções criminosas no sistema prisional pode ser inevitável em curto prazo, esta situação contribui para o crescimento de organizações criminosas e eleva as taxas de criminalidade em geral.”23 Ele concluiu que: “As muitas instituições previstas por lei para monitorar as condições das prisões, notoriamente incluindo juízes de execução penal, são incapazes ou falham em desempenhar esse papel de forma adequada. O número de tais juízes deve ser aumentado, e o modo pelo qual eles trabalham deve ser bastante aprimorado.’24 1.18 Alston repetiu muitos destes pontos em seu relatório completo e concluiu que “esforços mais amplos para o controle da criminalidade devem levar em conta o papel chave desempenhado pelas prisões para o crescimento das organizações criminosas, e o fracasso do sistema prisional em refrear as atividades do crime organizado.”25 Ele também observou que: “Na maioria das prisões, o Estado deixa de exercer controle suficiente sobre os presos e permite que as organizações criminosas (ou outros presos em “prisões neutras”) resolvam entre si questões de segurança interna da prisão. Frequentemente, confere-se a certos detentos mais poder sobre a vida diária dos outros presos do que aquele conferido aos agentes prisionais. Eles assumem o controle (às vezes brutal) da disciplina interna e da distribuição de alimentos, medicamentos e kits de higiene. Esta prática muitas vezes resulta em permitir que os líderes de organizações criminosas comandem as prisões.”26 1.19 Ainda quando um/uma novo(a) preso(a) não tem qualquer filiação a uma organização criminosa, Alston notou que pode ser exigido pelos administradores da prisão que ele ou ela escolha uma organização criminosa para se afiliar. “Um preso que se recusa é simplesmente atribuído a uma organização criminosa pela administração da prisão. A prática do Estado de exigir a identificação com uma organização criminosa equivale essencialmente ao Estado estar recrutando presos para tais organizações. Em última análise, contribui para o crescimento das organizações criminosas fora da prisão e eleva as taxas de criminalidade em geral.’27 1.20 Alston observou que estas práticas estavam diretamente relacionadas à superlotação das prisões e se solidarizou com aqueles que defendiam a política pública com base nisso. Ele disse que enquanto “organizações criminosas rivais devem claramente ficar separadas para evitar rebeliões e mortes nas prisões”, os estados deveriam criar mais prisões “neutras”, em que os presos sem qualquer filiação a organizações criminosas possam ser colocados. No entanto, a questão fundamental a abordar é a superlotação das prisões. 23 Ibid, par. 17. 24 Ibid, par. 21. 25 Relatório do Relator Especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, Sr. Philip Alston, Missão ao Brasil, A/HRC/11/2/Add.2 futuro, 28 de agosto de 2008, par. 41. 26 Ibid. 27 Ibid., par. 45 e 46. 12 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 1.21 As condições precárias e a acentuada superlotação nas prisões do Brasil estão bem documentadas. A população carcerária nacional aumentou consideravelmente na última década, e a taxa de encarceramento mais do que duplicou. O aumento dramático - causado pela morosidade do sistema judicial, pelo monitoramento precário da situação do preso e de seu direito de ser posto em liberdade, pelas elevadas taxas de criminalidade, altas taxas de reincidência, e pela popularidade de leis mais severas e decisões que favorecem penas privativas de liberdade mais longas em detrimento de penas alternativas - resultou em prisões severamente superlotadas. O sistema penitenciário foi concebido para armazenar apenas 60% dos presos que atualmente estão detidos em todo o país, e a ocupação de muitas prisões individuais está duas ou três vezes acima de suas capacidades.28 1.22 A violência nas prisões brasileiras não pode ser discutida sem remissão à violência nas ruas do Brasil. Por exemplo, algumas das organizações criminosas que dominam muitas das prisões do Brasil desenvolveram-se primeiramente em resposta à violência dispensada aos presos por agentes penitenciários. O Primeiro Comando da Capital (PCC), a organização criminosa mais poderosa e violenta de São Paulo, foi inicialmente formada por um grupo de presos para “vingar a morte de 111 presos” que foram mortos durante a repressão a um protesto em uma prisão chamada Casa de Detenção do Carandiru, a qual é descrita mais abaixo. 1.23 Em maio de 2006, o PCC lançou uma série de ataques coordenados contra policiais e agentes penitenciários em protesto às condições das prisões, o que resultou em cerca de 450 mortes.29 O número total de mortos é desconhecido porque, até o momento, as autoridades falharam em investigar essas alegações. O PCC assassinou mais de 40 agentes da lei no espaço de poucos dias, e a polícia reagiu matando centenas de suspeitos de serem membros de organizações criminosas e criminosos, muitos dos quais parecem ter sofrido execuções extrajudiciais. O PCC também realizou quase 300 ataques contra estabelecimentos públicos. Motins foram organizados em 71 prisões em São Paulo, que resultaram na morte de vários presos e funcionários. Uma trégua acabou com a violência, mas houve mais ataques em agosto, incluindo o seqüestro de um jornalista que obrigou a principal rede de notícias de televisão do Brasil a transmitir um vídeo de três minutos do PCC.30 1.24 A efetiva dominação de muitas prisões brasileiras por grupos criminosos destaca um dramático fracasso da administração da justiça criminal e do sistema penal que tem sido repetidamente salientado nos relatórios de organismos de monitoramento. Por exemplo, a Anistia Internacional afirmou em um relatório para o grupo de trabalho da Revisão Periódica das Nações Unidas sobre a situação dos Direitos Humanos no Brasil em 2008 que: 31 A superlotação extrema, as condições sanitárias precárias, a violência entre organizações criminosas e os motins continuam a arruinar o sistema prisional, no qual maus-tratos, incluindo espancamentos e torturas são comuns. Os números divulgados pelo sistema prisional mostraram que 30% das mortes de presos foram resultado de homicídios - seis 28 Ibid., par. 42. 29 Ver Sérgio Adorno & Fernando Salla, “A criminalidade organizada nas prisões e os ataques do PCC”, em Estudos Avançados, 21 (61), 2007. Estes declaram que um total de 439 mortes a tiro foram registradas entre 12 e 20 de maio de 2006 em necrotérios no estado de São Paulo durante este período. Oscar Vilhena Vieira, “Direito de Interesse Público. Uma Perspectiva Brasileira”, no UCLA Journal of International Law & Foreign Affairs. 224, 2008, p.252, cita o número de 492 mortes retaliatórias. 30 Ibid. 31 Apresentação do Brasil à Revisão Periódica das Nações Unidas, Primeira Sessão do Grupo de Trabalho UPR, 7-11 de abril de 2008, Índice AI: AMR 19/023/2007. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 13 vezes a taxa de homicídio da população em geral. Em agosto, 25 detentos foram queimados até a morte em Ponte Nova, Minas Gerais, após confrontos entre facções. No Espírito Santo, em meio às acusações de tortura e maus-tratos, o governo barrou a entrada nas celas dos presos do Conselho da Comunidade, um organismo oficialmente reconhecido que, segundo a lei estadual, tem o dever de monitorar o sistema prisional. Na prisão Aníbal Bruno, em Pernambuco, pelo menos três morreram e 43 ficaram feridos após um motim que eclodiu em novembro de 2007. Cronicamente com falta de pessoal e três vezes acima de sua capacidade, a prisão tem sido objeto de alegações de tortura e maus-tratos. Mais de 60 mortes foram registradas no sistema prisional de Pernambuco em 2007; mais de 20 delas, no presídio Aníbal Bruno. 1.25 A Anistia Internacional também recebeu relatórios extensos de violações de direitos humanos contra mulheres presas. Enquanto as mulheres representam apenas um pequeno percentual da população prisional, seus números estão crescendo. No entanto, pouco ou nada tem sido feito para atender as suas necessidades especiais. Grupos de direitos humanos em São Paulo realizaram um trabalho extenso de documentação de tortura, maus-tratos e condições cruéis, desumanas e degradantes sofridas pelas mulheres no sistema penitenciário estadual. Em novembro de 2007, uma menina de 15 anos sofreu abuso sexual enquanto mantida em uma cela com 20 homens adultos por um período de um mês, no norte do estado do Pará.32 1.26 O relatório anual sobre direitos humanos do Departamento de Estado dos EUA, em sua edição de 2008 relativa ao Brasil, também observou que: As condições das prisões em todo o país frequentemente variaram de precárias a extremamente duras e ameaçadoras. Abusos por parte de agentes prisionais, atendimento médico deficiente e superlotação severa ocorreram em muitas instalações. Os agentes penitenciários muitas vezes recorreram ao tratamento brutal de presos, incluindo a tortura. Condições duras ou perigosas de trabalho, negligência por parte dos funcionários, condições sanitárias precárias, abuso e maus-tratos pelos agentes prisionais e a falta de cuidados médicos levaram a uma série de mortes nas prisões. Condições precárias de trabalho e os baixos salários dos agentes prisionais estimularam a corrupção generalizada. Presos que cometeram crimes menores foram detidos junto com assassinos. Entre janeiro e junho, 135 presos estiveram envolvidos em motins em prisões federais. Houve várias queixas oficiais de superlotação nos estados de Goiás, Rio de Janeiro, São Paulo, e Minas Gerais. No Rio de Janeiro, indivíduos em prisão provisória eram freqüentemente mantidos com os presos condenados, devido à superlotação. . . . . Em janeiro, oito presos morreram em um incêndio em uma prisão do estado de Minas Gerais, quando um agente prisional deixou seu posto e ninguém mais tinha as chaves da instalação. Em fevereiro, presos em Minas Gerais queixaram-se de ratos e sarna na cadeia. Trinta presos ocupavam um espaço de 98 metros quadrados, sem exposição aos raios solares e com lesões não tratadas. Também em fevereiro, presos em Águas Lindas, no estado de Goiás, reclamaram da superlotação (120 presos em uma cadeia com capacidade para 37), comida estragada, e atrasos nos julgamentos por falta de defensores públicos.33 32 Ibid. 33 Relatório de Direitos Humanos de 2008: Brasil, Bureau of Democracy, Human Rights and Labor, Relatório sobre Práticas de Direitos Humanos, 25 de fevereiro de 2009. 14 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 1.27 Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Congresso brasileiro relatou resultados similares em junho de 2008.34 Ela descreveu as condições na prisão de Contagem, em Minas Gerais, onde 70 presos, confinados em celas construídas para 12 pessoas, eram obrigados a dormir em horários alternados e a superlotação tornava os banheiros inutilizáveis. O relatório também revelou que a superpopulação prisional na Bahia levou à utilização de 20 contêineres temporários para armazenar mais de 150 presos na unidade de Mata Escura, em Salvador. Os contêineres estavam infestados de ratos e baratas e não eram propriamente ventilados. Constatou-se que muitos estados estão deixando de fornecer unidades carcerárias separadas para as mulheres, e que os funcionários do sexo masculino que trabalham em prisões de mulheres frequentemente abusam das presas e extorquem favores sexuais. A Comissão também encontrou provas de presas sendo obrigadas a atuar como escravas sexuais e a participarem de atos pornográficos que foram gravados com câmeras de vídeo. Em todo o país, adolescentes foram presos em unidades prisionais com adultos, sem banheiros e sob condições desumanas. A capacidade insuficiente nos centros de detenção juvenil também foi relatada como um problema generalizado. 1.28 Um relatório da Pastoral Carcerária, vinculada à Igreja Católica, revelou que em algumas prisões presos ficavam dias sem receber alimento; que os presos com problemas de saúde mental eram mantidos trancafiados, sem tratamento adequado ou exame médico; e que as mães eram separadas de seus/suas filhos(as) recém-nascidos(as).35 Outro relatório afirmou que o assédio sexual em mulheres presas era rotina e que a separação das mulheres de suas famílias aumentou a sensação de isolamento devido as longas viagens para visitar as presas.36 1.29 A Human Rights Watch elaborou dois relatórios sobre cinco centros de detenção juvenil do Rio de Janeiro: um em 2003 e um subsequente, em 2005, no qual concluiu que “nós encontramos um sistema que estava decadente, sujo, e perigosamente superlotado. Vimos que as instalações não cumprem as normas básicas de saúde ou de higiene. As queixas de espancamentos e outros maus-tratos eram rotineiramente ignoradas. . . . O sistema não tinha controle efetivo; em especial, as sanções administrativas contra os agentes prisionais eram raras, e nenhum dos funcionários que falamos tinha conhecimento de qualquer caso em que um agente tinha recebido uma condenação criminal por conduta abusiva.”37 A Justiça Global, uma organização brasileira de direitos humanos, elaborou vários relatórios sobre as condições no presídio Urso Branco, em Porto Velho, Rondônia, o que levou a Corte Interamericana de Direitos Humanos a emitir uma resolução urgente condenando os maus-tratos de presos do estabelecimento em dezembro de 2009.38 Relatando deficiências sistemáticas: Uma sensação de déjà vu? 1.30 Esses relatórios são compatíveis com muitos outros que documentam violações de direitos humanos dentro do sistema prisional brasileiro nas últimas duas décadas. De fato, é impressionante como pouco parece ter mudado - salvo o enorme aumento no número de pessoas sendo presas - apesar do consenso generalizado de que o sistema atual é disfuncional. 34 Relatório Final da CPI do Sistema Carcerário, Câmara dos Deputados, julho de 2008. 35 Pastoral Carcerária, A Situação dos Direitos Humanos no Sistema Prisional dos Estados do Brasil – Contribuição e Observações da Pastoral Carcerária, 2005. 36 Caroline Howard, Mulheres Encarceradas e Direitos Humanos, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania e Pastoral Carcerária, 2006. 37 Human Rights Watch, No Escuro: Abusos Ocultos Contra Jovens Detidos no Rio de Janeiro, junho de 2005. 38 Justiça Global, OEA: Presos do Urso Branco Ainda Correm Risco de Vida, 15 de dezembro de 2009. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 15 Uma CPI do sistema prisional, em 1994, chegou a conclusões semelhantes às listadas acima, e estas foram seguidas por consultas similares em nível estadual, conduzidas pelas Comissões de Direitos Humanos das assembléias legislativas estaduais. Há uma forte sensação de déjà vu decorrente dos relatórios de organismos internacionais de fiscalização das últimas duas décadas. O governo federal tem afirmado, repetidamente, que aceita muitas de suas conclusões e pretende tomar medidas para lidar com os problemas identificados, porém, os relatórios subsequentes mostram poucos avanços na prática. 1.31 Em um relatório publicado em 2001, por exemplo, o Relator Especial da ONU sobre a Tortura, Sir Nigel Rodley, destacou que a terrível superlotação em alguns centros de detenção e prisões necessitavam de um fim imediato39. Ele observou que “a tortura é generalizada e, na maioria das vezes, é direcionada às pessoas das camadas mais baixas da sociedade e/ou aos afrodescendentes ou pertencentes a minorias. . . . . As técnicas relatadas como as mais comumente utilizadas foram espancamentos com as mãos, com ferro, barras de madeira ou com palmatória (um pedaço de madeira plano mas grosso, semelhante a um colher grande, que dizem ter sido usado para bater nas palmas das mãos e na sola dos pés dos escravos); técnicas referidas como telefone, que consiste em tapas repetidos nos ouvidos da vítima, alternada ou simultaneamente; pau de arara, técnica que consiste em espancar uma vítima que foi pendurada de cabeça para baixo; e aplicação de eletro-choques em várias partes do corpo, incluindo os órgãos genitais, colocando sacos de plástico, por vezes preenchidos com pimenta, sobre a cabeça das vítimas. O objetivo de tais atos era, supostamente, fazer com que as pessoas presas assinassem uma confissão ou extorquir dinheiro mediante suborno, punir ou intimidar pessoas suspeitas de terem cometido um crime.”40 1.32 Em 2005, o Comitê das Nações Unidas contra a Tortura repetiu a preocupação do Relator Especial afirmando que dezenas de milhares de pessoas ainda estavam detidas em delegacias e em outras instalações do sistema penitenciário, onde a tortura e maus tratos similares continuam a ser aplicados de uma forma generalizada e sistemática.41 O Comitê afirmou que a superpopulação endêmica, as condições insalubres de confinamento, o calor extremo, a privação de luz e o confinamento permanente (fatores com conseqüências graves para a saúde dos presos), juntamente com a violência pervasiva, persistem.42 1.33 No mesmo ano, um Relator Especial da ONU sobre a Independência dos Juízes e dos Advogados, Leandro Despouy, observou que, em uma visita a uma delegacia de polícia em Belém, ele conheceu pessoas que haviam sido detidas por até nove meses, sem a oportunidade de serem ouvidas por um juiz.43 1.34 Um relatório da Human Rights Watch publicado em 1998 e um relatório da Anistia Internacional em 1999 detalharam quase exatamente os mesmos padrões de violações aos 39 Relatório do Relator Especial, Sir Nigel Rodley, apresentado ao amparo da Resolução 2000/43 da Comissão de Direitos Humanos, Adendo da Visita ao Brasil, E/CN.4/2001/66/Add.2, 30 de março de 2001. 40 Ibid., par. 9. 41 Comitê Contra a Tortura, Relatório sobre o Brasil produzido pelo Comitê ao amparo do Artigo 20 da Convenção e resposta do governo do Brasil (CAT/C/39/2), versão avançada não editada de 23 de novembro de 2007, tornada pública por decisão do Comitê Contra a Tortura, adotada em 22 de novembro de 2008. 42 Ibid., par. 178. 43 Direitos civis e políticos, incluindo as questões da independência do Judiciário, administração da justiça, impunidade, Relatório do Relator Especial sobre a independência de juízes e advogados, Sr. Leandro Despouy, Missão ao Brasil, E/CN.4/2005/60/Add.3, 22 de fevereiro de 2005. 16 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 descritos acima.44 No entanto, embora muitas das práticas identificadas são claramente ilegais, parece que pouco tem sido feito para combatê-las desde que o relatório seguinte foi escrito. No decorrer de nossa pesquisa, a Human Rights Watch entrevistou dezenas de presos que descreveram, com credibilidade, terem sido torturados em delegacias de polícia. Normalmente, os presos eram despidos, pendurados em um “pau-de-arara” e submetidos a espancamentos, choques elétricos e quase-afogamentos. Muitos detentos permaneciam por longos períodos no recinto onde sofreram a violação, permanecendo em contato contínuo com seus torturadores. . . . . Apesar da lei penitenciária nacional do Brasil determinar que os presos tenham acesso a vários tipos de assistência, incluindo assistência médica, assistência jurídica e serviços sociais, nenhum desses benefícios é oferecido nos termos da lei. . . A situação é particularmente ruim em delegacias de polícia, onde presos gravemente doentes e até mesmo morrendo podem ficar amontoados junto com outros detentos. Outro problema sério é a violência entre presos. Nas prisões mais perigosas, presos poderosos matam outros impunemente, enquanto mesmo em prisões relativamente seguras, extorsões e outras formas de maus-tratos são comuns. Uma série de fatores combinam-se para causar tais violações, entre eles, as condições adversas, a falta de supervisão eficaz, a abundância de armas, a falta de atividades e, talvez mais importante, a falta de classificação dos presos. De fato, reincidentes violentos e pessoas detidas pela primeira vez por delitos pequenos muitas vezes dividem a mesma cela no Brasil. . . . . Infelizmente, porque o censo penitenciário nacional parou de compilar estatísticas sobre homicídios de presos depois de 1994, os índices gerais de brutalidade entre presos são desconhecidos. . . . Somente assassinatos de presos cujos corpos são difíceis de ignorar parecem merecer investigação e processo e, mesmo assim, a condenação e subsequente encarceramento dos culpados são extremamente raros. Em outras palavras, promotores públicos e outros funcionários da Justiça dividem grande parte da culpa pelos altos níveis de violência institucional que os presos enfrentam.45 1.35 O relatório afirmou que “uma proporção substancial dos casos de motins, greves de fome e outras formas de protesto ocorridos em estabelecimentos penais do país é diretamente atribuível à superlotação. Em muitos casos, especialmente no estado de São Paulo, os presos se amotinaram simplesmente para exigir que fossem transferidos a um estabelecimento menos lotado, querendo tipicamente sair de uma cadeia abarrotada para uma prisão mais espaçosa.”46 1.36 Ele observou que o déficit de capacidade disponível aumentou 27 por cento entre 1995 e 1997, e previu corretamente que seria provável que esta tendência continuasse. Também chamou a atenção para o tempo em que indivíduos passavam presos provisoriamente, e afirmou que, embora este varie consideravelmente de estado para estado, não era raro encontrar presos que haviam passado anos em prisão provisória. Enquanto muitas pessoas que não deveriam estar detidas encontravam-se em prisões,, o relatório também afirmou que o sistema de justiça criminal estava falhando em assegurar que aqueles que eram condenados ao encarceramento fossem, de fato, para a prisão. 44 Human Rights Watch, Atrás das Grades no Brasil, 30 de novembro de 1998; Anistia Internacional, Brasil: “Ninguém aqui dorme em segurança”: Violações de direitos humanos dos detentos, Índice AI: AMR 19/009/1999, 22 de junho de 1999. 45 Ibid. p. 2-4. 46 Ibid. p. 33. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 17 1.37 O Ministério da Justiça estimou que em 1994 havia 275.000 mandados não cumpridos, significativamente mais do que o número de indivíduos encarcerados. Apenas em Brasília, o Ministério Público anunciou neste ano que dos 15.077 mandados de prisão expedidos em sua jurisdição ao longo dos últimos três anos, apenas um terço deles foram efetivamente cumpridos; os réus, no restante dos casos, estão foragidos. Obviamente, se estes condenados foragidos fossem localizados e encarcerados, as prisões explodiriam. No entanto, é difícil estimar o número real de fugitivos, uma vez que as cifras estadual e federal incluem penas múltiplas para um único réu, réus que morreram e casos em que a prescrição operou. Um especialista em prisões recomenda que, no mínimo, os números existentes sejam divididos por cinco para que se leve em conta esses fatores. Ainda assim, o número de presos adicionais que esses mandados representam poderia colocar um encargo significativo sobre um sistema penal já sobrecarregado 1.38 É difícil obter números atualizados e precisos sobre esta questão, no entanto, o número mais comumente citado de mandados não cumpridos é de 300.000. Baseando-se no mesmo cálculo de que cada cinco casos representa apenas uma pessoa, isto significa que existem atualmente cerca de 60.000 pessoas condenadas a penas de prisão que não foram cumpridas. As dificuldades para obter esses dados, ou de fato alguma informação precisa e atualizada sobre a população prisional, indicam um problema mais amplo nos sistemas penal e de justiça criminal no Brasil. Nenhuma quantidade de novas leis ou de novas instituições pode solucionar ineficiências e a incompetência; elas poderiam, de fato, agravar a situação existente ao acrescentar novas camadas de burocracia e confusão administrativa àquelas que existem atualmente. atitudes políticas e sociais com vistas à reforma penal 1.39 No relatório, a Human Rights Watch também observou que, embora a falta de recursos possa ter sido a causa de algumas falhas do sistema, a ausência de vontade política foi mais significativa do que a escassez de fundos. Na verdade, “algumas das crueldades mais extremas impostas aos presos brasileiros, como por exemplo as execuções sumárias pela polícia militar, de maneira alguma podem ser atribuídas a recursos públicos escassos.” Concluiu-se que a razão mais importante pela qual tais generalizadas e graves violações de direitos humanos foram cometidas diariamente era “a sensação de que as vítimas dos abusos – os presos e, portanto, criminosos - não eram dignos de preocupação da sociedade.” No relatório, argumentou-se que isto se devia, parcialmente, ao fato que a maioria dos presos brasileiros veio “de setores marginais da sociedade, que são pobres, sem instrução e politicamente impotentes” e, em parte, por causa da preocupação do público com os crescentes índices de crimes violentos.47 1.40 A Anistia Internacional também observou que o principal problema não era a falta de dinheiro, e que havia ocorrido uma significativa subutilização em algumas áreas do orçamento para prisões. “Embora os governos federal e estadual estejam atualmente construindo novas prisões, e os presos estejam sendo gradualmente transferidos para fora das delegacias de polícia, a mesma importância deve ser dada ao investimento em capital humano e ao aumento da quantidade, qualidade e responsabilidade dos funcionários que trabalham dentro da sistema 47 Ibid. 18 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 prisional. O governo federal destinou cerca de US$ 456 milhões de dólares para o sistema prisional em 1995-1997, mas gastou apenas 57% da dotação orçamental. Dos US$ 540.000 destinados à formação de pessoal, segundo relatado, nada foi gasto.”48 1.41 Em um relatório mais recente sobre as condições em um centro de detenção juvenil em São Paulo, CASA, a organização de direitos humanos brasileira Conectas assinalou que a instituição foi relativamente bem financiada e que a falta de recursos materiais não foi a raiz do problema. “Pelo contrário, é uma cultura institucional que valoriza a punição sobre a reabilitação e falha em responsabilizar seus funcionários por atos violatórios. A situação é reforçada pela opinião generalizada na sociedade brasileira de que os jovens mantidos na CASA são perigosos e exigem os métodos mais brutais para mantê-los sob controle. Na verdade, os jovens condenados por infrações menores são misturados com os condenados por crimes mais graves; o denominador comum é que todos vêm de famílias pobres. Jovens afluentes raramente são relegados a CASA.”49 1.42 Outros estudos também relacionaram a tolerância pública a violações dos direitos dos presos à hostilidade do público em relação aos criminosos suspeitos ou condenados. O medo de crimes violentos continua a ser persuasivo em toda a sociedade brasileira, levando ao apoio a uma política penal “dura”. Como será discutido a seguir, até mesmo o governo brasileiro culpa a hostilidade aos direitos humanos de parte da opinião pública por muitos dos abusos que ocorrem dentro do sistema. No entanto, isto pode simplificar demasiadamente a postura da sociedade brasileira com relação aos direitos humanos, ao crime e à Justiça, que parecem ter passado por uma série de fases distintas ao longo das últimas décadas. 48 Índice AI: AMR 19/009/1999, 22 de junho de 1999. 49 Vilhena 2008, p.250. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 19 20 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 CaPÍTULo 2 PRoTEÇÃo doS diREiToS HUmanoS no BRaSiL – “PaRa inGLÊS VER?” obrigações nacionais e internacionais de direitos humanos: teoria e prática 2.1 A atual Constituição brasileira foi promulgada em 5 de Outubro de 1988 e inclui uma longa lista de direitos e liberdades que cada cidadão brasileiro deve ter respeitada. Direitos e liberdades fundamentais são definidos como a base do Estado Democrático de Direito, e a Constituição prevê que a promoção dos direitos humanos deve ser um princípio básico que rege as relações internacionais do Brasil. O Brasil ratificou todos os principais instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos e criou uma série de órgãos institucionais para promover e proteger tais direitos. 2.2 O Brasil ratificou o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) 50 e está em processo de adesão ao seu primeiro Protocolo Facultativo, que permite ao Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas considerar as queixas individuais nele baseadas. O Brasil também é parte do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC),51 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CIEDR), 52 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDM), 53 da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (CCT), 54 e da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC). 55 O Brasil ratificou em 2007 o Protocolo Facultativo ao CAT que prevê um sistema de monitoramento dos locais de detenção.56 Ratificou também todos os principais tratados interamericanos de direitos humanos, incluindo: a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, “Protocolo de São Salvador”, o Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Referente à Abolição da Pena de Morte e a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. O Brasil reconhece a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e declarou que suas decisões são obrigatórias. 50 Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado e aberto para assinatura, ratificação e adesão pela Assembléia Geral, Resolução 2200A (XXI) de 16 de dezembro de 1966, que entrou em vigor em 23 de março de 1976 (PIDCP). 51 Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Assembléia Geral, Resolução 2200A (XXI), 21 U.N. GAOR Sup. (Nº 16) no Doc. 49 das Nações Unidas A/6316 (1966), 993 U.N.T.S. 3, que entrou em vigor em 03 de janeiro de 1976.(PIDESC). 52 Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, 660 U.N.T.S. 195, que entrou em vigor em 04 de janeiro de 1969 (CIEDR). 53 Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contras as Mulheres, Assembléia Geral, Resolução 34 U.N. GAOR Sup. (Nº 46) no Doc. das Nações Unidas A/34/46, que entrou em vigor em 03 de setembro de 1981 (CEDM). 54 Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, Assembléia Geral, Resolução 39/46, anexo, 39 U.N. GAOR Sup. (Nº 51) no Doc. 197 das Nações Unidas, Doc. das Nações Unidas A/39/51 (1984), que entrou em vigor em 26 de junho de 1987 (CCT). 55 Convenção dos Direitos das Crianças, Assembléia Geral, Resolução 44/25, anexo, 44 U.N. GAOR Sup. (Nº 49) no Doc. 167, Doc. das Nações Unidas A/44/49 (1989), que entrou em vigor em 02 de setembro de 1990 (CDC). 56 Ver Associação para a Prevenção da Tortura, OPCAT Status do País. Ratificação e Implementação, 08 de setembro de 2009. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 21 2.3 Como resultado de uma emenda constitucional de 2005, as normas internacionais de Direitos Humanos têm status constitucional, desde que tenham sido aprovadas em um processo legislativo por maioria absoluta. Esta emenda criou a possibilidade de “federalizar” certos casos – o que significa levá-los dos tribunais estaduais aos tribunais federais - quando estes envolvem graves violações de direitos humanos. Ela também reconheceu expressamente a jurisdição do Tribunal Penal Internacional - embora a lei que implementará esta medida ainda tenha que ser aprovada pelo Congresso brasileiro. 2.4 Em 2003, o Brasil promoveu a Secretaria Especial de Direitos Humanos, que anteriormente estava sob o Ministério da Justiça, para dar-lhe status ministerial, encontrando-se sob o gabinete do Presidente. Também foi criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Em 2007 o governo anunciou que pretendia criar um Sistema Nacional de Indicadores de Direitos Humanos, em colaboração com as duas principais instituições brasileiras oficiais de pesquisa - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) - que se destinam a ajudar a orientar o planejamento e monitoramento das políticas de governo. 2.5 O governo brasileiro também consultou os grupos da sociedade civil para a elaboração de alguns dos seus mais recentes relatórios sobre direitos humanos, como o que foi apresentado ao Mecanismo de Revisão Periódica Universal das Nações Unidas que discutiu a situação do Brasil em 2008.57 Este relatório refletiu um conjunto de boas práticas relativas a abertura e inclusão envolvendo uma ampla revisão das práticas por uma série de departamentos governamentais e entidades, coordenado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH) e pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE). Ele também envolveu discussões com a sociedade civil através da internet e de reuniões públicas, inclusive uma audiência pública no Senado Federal em fevereiro de 2008. 2.6 O Brasil foi um dos primeiros países do mundo a elaborar um programa nacional de direitos humanos em 1994, em conformidade com as recomendações da Conferência Mundial da ONU sobre Direitos Humanos em Viena, em 1992. Este plano foi revisado e atualizado em 2002 e, em janeiro de 2008, o governo anunciou o início de uma discussão nacional para produzir uma terceira edição, que foi lançada em 15 de dezembro de 2009. Em 2006 o Brasil transformou seu antigo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana no Conselho Nacional de Direitos Humanos. O Brasil também tem estendido convites abertos a Relatores Especiais da ONU para visitarem o país nos últimos anos. Desde 1998, o Brasil recebeu 11 visitas de relatores especiais de 10 áreas diferentes, além de uma visita do Comitê contra a Tortura (CAT). As ex-Alto Comissárias das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Mary Robinson e Louise Arbour visitaram o Brasil em 2002 e 2007, enquanto a atual Alto Comissária Navi Pillay visitou em 2009. O governo federal tem colaborado plenamente com todas essas visitas. 2.7 Uma Relatora Especial da ONU, Asma Jahangir, observou que a Constituição do Brasil de 1998 “é a estrutura básica que institucionaliza os direitos humanos no Brasil. Na década de 1990, o presidente Fernando Henrique Cardoso adotou uma política nacional abrangente para a promoção dos direitos humanos, que incluiu a ratificação da maioria dos principais 57 Relatório nacional apresentado de conformidade com o parágrafo 15(a) do anexo à Resolução 5/1 do Conselho de Direitos Humanos, Brasil, Grupo de Trabalho sobre a Revisão Periódica Universal, Primeira Sessão, Genebra, 7-18 de abril de 2008, A/HRC/WG.6/1/BRA/1, 7 de março de 2008. 22 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 tratados internacionais e regionais de direitos humanos. Gradualmente, a política avançou com governos subsequentes. O início da administração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no princípio de 2003, deu um novo impulso ao compromisso do Governo com os direitos humanos, com especial ênfase nos direitos econômicos e sociais.”58 Em seu documento a ser submetido à revisão da ONU sobre a situação do governo brasileiro, a Anistia Internacional afirma também que o Brasil promulgou “algumas das leis mais progressistas para a proteção dos direitos humanos na região. . . [essas leis] todas foram reconhecidas como referência essencial para a proteção dos direitos humanos. No entanto, uma enorme defasagem permanece entre o espírito dessas leis e sua implementação.”59 2.8 Muitos observadores notaram o contraste entre o compromisso formal do Brasil com as normas democráticas liberais e a violação dos direitos básicos de tantos dos seus cidadãos. Por exemplo, o Brasil introduziu uma lei específica para criminalizar a tortura em 1997, porém, os processos têm sido raros, apesar dos relatos repetidos de organismos de controle de que a prática é “generalizada e sistemática” nas prisões. Em seu comentário mais recente sobre a situação do Brasil, o Relator Especial da ONU sobre a Tortura, Manfred Nowak, voltou a salientar que a falha mais importante foi a falta de vontade política por parte das autoridades nacionais de aplicar suas próprias leis: “Em primeiro lugar, e acima de tudo, os principais líderes políticos federais e estaduais precisam declarar inequivocamente que não vão tolerar a tortura ou outros maus-tratos por funcionários públicos. . . . Eles precisam tomar medidas enérgicas para fazer essas declarações críveis e deixar claro que a cultura de impunidade tem que acabar. . . . . Em particular, eles devem responsabilizar pessoalmente os indivíduos a cargo dos centros de detenção no momento em que os abusos são perpetrados.”60 2.9 De fato, o Brasil continua sendo um dos países mais violentos e desiguais do mundo. Como o relatório do Departamento de Estado dos EUA de 2008 nota, as seguintes violações de direitos humanos ainda são consideradas rotina: Execuções ilegais, uso de força excessiva, espancamentos, violação sexual e tortura de indivíduos detidos ou presos pela polícia e pelas forças de segurança carcerária; incapacidade de proteger testemunhas envolvidas nos processos penais; más condições nas prisões; prisão provisória prolongada e morosidade excessiva nos julgamentos; relutância em processar, assim como ineficiência na persecução penal de funcionários do governo por corrupção;. . . . Violadores de direitos humanos, frequentemente, restaram impunes. Em muitos casos os policiais fizeram uso indiscriminado da força letal durante as apreensões. Em alguns casos, as mortes de civis ocorreram após severas perseguições ou tortura por agentes da lei. Mortes pela polícia ocorreram por vários motivos. Confrontos com criminosos fortemente armados resultaram em tiroteios. Alguns policiais acusados de matar suspeitos não tinham treinamento ou profissionalismo para administrar a força letal. Em outras ocasiões, a polícia se comportou 58 Direitos civis e políticos, inclusive a questão dos desaparecimentos e execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, Relatório da Relatora Especial Asma Jahangir, Missão ao Brasil, E/CN.4/2004/7/Add.3, 28 de janeiro de 2004. 59 Índice AI: AMR 19/023/2007. 60 Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, Adendo ao Relatório do Relator Especial sobre Tortura e Outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes: Acompanhamento das Recomendações Feitas pelo Relator Especial; Visitas ao Azerbaijão, Brasil, Camarões, Chile, México, Romênia, Federação Russa, Espanha, Turquia, Uzbequistão e Venezuela, 21 de março de 2006, E/CN.4/2006/6/Add.2, disponível em: http://www.unhcr.org/ refworld/docid/45377b200.html [acessado em 22 de setembro de 2009]. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 23 como os criminosos. Esquadrões da morte ligados a agentes da lei realizaram muitas execuções; em alguns casos, com a participação de policiais. Grupos locais de direitos humanos dignos de confiança denunciaram a existência, em vários estados, de esquadrões da morte organizados ligados às forças policiais, que alvejavam suspeitos de crimes e de pessoas consideradas problemáticas ou indesejáveis por proprietários de terra.61 2.10 Em uma discussão de um grupo de trabalho da ONU, em 2008, um representante do governo afirmou que “a implementação de políticas e legislação no âmbito estadual e municipal do Brasil é pobre” e a coleta sistemática de dados é fraca. Reafirmando as preocupações com a tortura, com o uso excessivo da força e com a impunidade, ele recomendou que o governo, “continuando suas iniciativas positivas em muitas destas áreas, invista mais rigor na avaliação dos resultados das atividades planejadas”. 62 2.11 O governo brasileiro respondeu que a tortura, “embora inaceitável, ainda estava presente nos locais de detenção”.63 Também admitiu que existem “denúncias freqüentes de abuso de poder, tortura e uso excessivo da força, cometidos principalmente por agentes policiais e penitenciários”.64 Por exemplo, uma investigação oficial sobre um incidente, em junho de 2007, durante uma operação policial no Complexo do Alemão, uma favela no Rio de Janeiro, “confirmou indícios de execuções” entre as 19 pessoas mortas pela polícia. O governo também afirmou que os dados oficiais dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro - os únicos estados da federação que mantêm esses registros - mostram que 8.520 pessoas foram mortas por policiais nos últimos cinco anos. Foi impossível fornecer mais detalhes sobre a extensão dos problemas de tortura e de execuções extra-judiciais, devido à falta de informações estatísticas.65 2.12 O governo anunciou que uma comissão nacional sobre a tortura fora criada e que o país planejava adotar o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura da ONU, que prevê um sistema de inspeções.66 Também afirmou que havia lançado um Programa Nacional de Saúde Pública com Cidadania - PRONASCI, que pretende “lutar contra o crime organizado, focando suas estratégias na corrupção do sistema penitenciário para garantir a segurança dos cidadãos.” Sua orientação básica seria a de dar prioridade à prevenção do crime e ao respeito aos direitos humanos. No entanto, concluiu que: “Os principais desafios para a plena erradicação da prática da tortura no país consistem na resistência de agentes públicos a denunciar e investigar casos praticados por colegas de profissão, no medo das vítimas e de seus familiares de denunciar a tortura, e na percepção equivocada de parte dos agentes públicos e da população de que a prática de tortura seria justificável no contexto de ações para combater a criminalidade. . . . . A vigência de uma ditadura ao longo de vinte anos (1964-1985) contribui para explicar as dificuldades ainda hoje existentes em conciliar a promoção da segurança pública em um marco de pleno respeito aos direitos humanos.” 67 61 Relatório de Direitos Humanos de 2008: Brasil, Escritório de Democracia, Direitos Humanos e Trabalho, Relatórios Nacionais de 2008 sobre Práticas de Direitos Humanos, 25 de fevereiro de 2009. 62 Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, Relatório do Grupo de Trabalho sobre a Revisão Periódica Universal, Brasil, Doc. das Nações Unidas A/HRC/8//27, 22 de maio de 2008, par. 51. 63 Ibid., par. 42. 64 Relatório nacional apresentado em conformidade com o parágrafo 15(a) do anexo à Resolução 5/1 do Conselho de Direitos Humanos, Brasil, Grupo de Trabalho sobre a Revisão Periódica Universal, Primeira Sessão, Genebra, 7-18 de abril de 2008, A/HRC/WG.6/1/BRA/1, 7 de março de 2008, par. 51. 65 Ibid., par. 52. 66 Ibid. O Brasil, de fato, havia ratificado este Protocolo em 2007. 67 Ibid., par. 56 e 57. 24 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 2.13 O governo também afirmou que “A população carcerária brasileira [sic] é de cerca de 420 mil pessoas, das quais 122 mil estão provisoriamente detidas, sem terem sido ainda julgadas. O sistema prisional tem um déficit de cerca de 105 mil vagas. A superpopulação carcerária constitui um elemento gerador de freqüentes rebeliões, que acabam por causar morte de internos. O governo vem incentivando a aplicação de penas e medidas alternativas à prisão, que nos últimos 10 anos beneficiaram mais de 174 mil pessoas. Medidas estão sendo tomadas para ampliar as oportunidades de trabalho oferecidas tanto aos internos quanto ás pessoas egressas do sistema prisional. Atualmente, cerca de 87 mil internos trabalham voluntariamente, o que lhes permite, além de gerar fonte própria de renda, reduzir o tempo de cumprimento da pena privativa de liberdade. Também vem sendo ampliada a rede de escolas penitenciárias que proporcionam ao preso acesso à educação. O PRONASCI inclui entre suas ações a remissão de dias de pena judicial em proporção ao tempo de aulas assistidas pelos condenados nas instituições penais.”68 “Em resposta a dois incidentes recentes ocorridos em cadeias públicas do estado de Minas Gerais, em 2007, nos quais morreram, em uma rebelião e em um incêndio, um total de 33 presos, foi instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara dos Deputados com a finalidade de investigar as fragilidades do sistema carcerário brasileiro e buscar soluções para o efetivo cumprimento da Lei de Execuções Penais. Uma das principais medidas adotadas nos últimos anos foi a edição de uma legislação destinada a controlar e reduzir a venda, a circulação e o uso de armas de fogo no país. Ainda que a proibição total do comércio de armas de fogo não tenha sido aceita em referendo, a nova legislação, seguida de uma campanha de arrecadação de armas, foi responsável pela saída de circulação de quase 500 mil armas e seguramente contribuiu de maneira decisiva para a redução em 16,6% no número de mortos por arma de fogo no país.”69 Embora nem todas as reivindicações possam ser aceitas pelo valor alegado, também seria errado rejeitá-las julgando-as como inteiramente supérfluas; elas refletem um compromisso extremamente real de muitos que trabalham no governo federal com o encaminhamento da situação de direitos humanos no Brasil. O governo brasileiro iniciou também um programa de reforma do sistema judicial para solucionar algumas das fraquezas sistêmicas do sistema atual, que é discutido mais adiante. 2.15 Este relatório argumenta que a reforma do sistema judicial deveria ser acompanhada do enfrentamento dos problemas que confrontam o sistema penitenciário, uma vez que, a menos que os dois sejam tratados em conjunto, nenhum terá êxito isoladamente. Uma compreensão dos desafios encarados por aqueles envolvidos na tentativa de reformar o sistema de justiça criminal no Brasil deve englobar não apenas as leis e instituições formais e mecanismos de revisão, mas também a forma pela qual estas instituições realizam o seu trabalho na prática e no contexto histórico-político específico em que elas se desenvolveram. Proteções dos direitos humanos no sistema de justiça criminal brasileiro 2.16 Conforme discutido acima, as proteções formais conferidas aos direitos humanos no sistema 68 Ibid., par. 61. 69 Ibid., par. 62 e 63. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 25 de justiça criminal brasileiro são consideráveis. Ao menos no papel, elas estão entre as mais progressistas do mundo. O direito brasileiro proíbe prisões e detenções arbitrárias e limita a prisão àqueles pegos em flagrante delito ou presos por ordem de uma autoridade judicial. É proibido o uso da força durante a prisão, a menos que o suspeito tente fugir ou resistir à prisão. Os suspeitos devem ser informados dos seus direitos na ocasião da prisão ou antes de serem levados sob custódia para o interrogatório. A polícia é obrigada a informar imediatamente um juiz sobre uma prisão em flagrante. O limite de tempo para isto está especificado como sendo de 24 horas, ao amparo do Código de Processo Penal (CPP) brasileiro. A família do preso também deve ser notificada da prisão do mesmo, e os detalhes do caso devem ser encaminhados à Defensoria Pública 2.17 Um juiz deve, então, analisar o caso e distribuí-lo a um procurador do estado que decidirá quando oferecer uma denúncia. O caso também deve ser atribuído a um advogado de defesa. Se o réu não pode pagar um advogado particular, o juiz deverá encaminhar o caso à Defensoria Pública, um órgão profissionalmente estruturado, cujo papel está previsto na Constituição atual. Os réus têm direito à representação legal em seus julgamentos. Eles também têm o direito de confrontar e questionar as testemunhas, o direito de permanecer em silêncio sem que isso leve a conclusões negativas, o direito de gozar da presunção de inocência e o direito de recurso. A lei reconhece a competência do Júri Popular para julgar casos que envolvam crimes dolosos contra a vida. Os juízes julgam os acusados de crimes menores. 2.18 A Constituição do Brasil de 1998 especifica que o Judiciário tem o dever de tratar os presos em prisão provisória como inocentes, o que significa que eles só devem ser detidos como último recurso.70 Entretanto, o Código de Processo Penal confere aos juízes o poder de impor aos suspeitos “medidas de precaução” (incluindo prisão) que podem ser decretadas durante a investigação policial ou em fase de instrução dos processos criminais. A prisão preventiva só pode ser decretada em três circunstâncias: para “ garantir a ordem pública ou econômica”, para melhor procedência da instrução criminal e para assegurar a futura aplicação da lei penal. 71 2.19 O primeiro destes fundamentos é obviamente muito abrangente e subjetivo, e muitos ativistas brasileiros de direitos humanos o consideram inconstitucional. A lei também define os fatores que o juiz deve considerar detalhadamente. Eles incluem o tipo de crime do qual o réu é acusado – e a pena máxima prescrita para ele – e as circunstâncias particulares do réu. Os juízes são obrigados a levar em conta se o réu tem alguma condenação anterior, mas também se ele tem emprego estável, endereço fixo e outros fatores que possam torná-lo mais ou menos propenso a evadir-se. Claramente, tais fatores tornam mais provável que um réu pobre fique sujeito a prisão preventiva do que um réu rico. Disposições similares podem ser encontradas nos códigos de processo penal de muitos outros países e não são incoerentes com as leis internacionais de direitos humanos; contudo, a acentuada quantidade de sem-teto no Brasil, juntamente com o imenso número de pessoas vivendo em áreas de ocupação informal, como as favelas, que não têm endereços legalmente reconhecidos, significam que esse dispositivo tem impacto maciço na prevalência da prisão provisória no Brasil. 70 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (Constituição Federal), Artigo 5, LVII. 71 Código Processo Penal 1941 Artigo 312. 26 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 2.20 O caso preliminar contra o indiciado deverá ser apresentado pela promotoria. Depois disso, a lei não prevê um prazo máximo para a prisão preventiva, a qual é definida caso a caso. No entanto, a Corte e a Comissão Interamericanas de Direitos Humanos estabeleceram que dois ou três anos de prisão provisória pode violar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário.72 O período de tempo em prisão provisória é subtraído da pena. No entanto, com os atrasos que ocorrem na condução dos julgamentos, as pessoas podem acabar sendo mantidas em prisão provisória por mais tempo do que aquele previsto na decisão final condenatória, levando-se em consideração as disposições da lei sobre decisões condenatórias à prisão – Lei de Execução Penal – de 1994, descritas abaixo.73 2.21 Um conceito fundamental sobre o qual a legislação penal do Brasil se baseia é o de que todos os presos devem ser tratados como indivíduos e suas sentenças devem refletir suas situações particulares, tendo como objetivo final sua reabilitação e reintegração na sociedade. A lei prevê penas fixas para diversos crimes, mas os juízes devem também levar em consideração as circunstâncias do caso concreto, todas as condenações anteriores do réu e outras questões semelhantes, o que afetará a sua decisão sobre a sentença. Se um preso é condenado a uma pena de prisão, o juiz que proferiu a sentença também deve considerar o grau de segurança dentro do qual o mesmo deve cumprir a pena. 2.22 A lei brasileira dispõe que uma pena de prisão deve ser considerada como um processo dinâmico, e não simplesmente um termo fixo de anos. O juiz deve, portanto, monitorar continuamente o caso do preso, ajustando os termos da sentença ao seu comportamento. Normalmente, um preso que começa uma condenação em regime fechado deve ser transferido para uma unidade semi-aberta após um certo período e, de lá, para um regime aberto e, finalmente, a libertação para a sociedade. Os juízes devem decidir sobre os pedidos de transferências de prisão - muitas vezes de regime fechado para semi-aberto - e também avaliar periodicamente se os presos devem ser autorizados a saídas temporárias, se devem ser desinternados, ou se a conversão de um tipo de pena para outro é aplicável. 2.23 Alguns estados têm juízes especializados que se concentram especificamente nos presos, seja em tempo integral ou seja como uma parte específica de sua carga de trabalho; e estes são conhecidos como juízes da Vara de Execução Penal. Em outros estados, o juiz que sentencia o preso permanece responsável pelo caso durante o período de duração da prisão. Os juízes também têm um papel importante no monitoramento das condições prisionais por meio da realização de inspeções e de interdições das administrações prisionais que violarem as normas relativas à prisão ou o disposto na sentença condenatória. A Lei de Execução Penal também prevê que os juízes devem realizar inspeções mensais das instituições penais.74 2.24 As regras relativas às prisões no Brasil - Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil - de 1994, baseiam-se nas Regras Mínimas da ONU, que refletem amplamente as melhores práticas internacionais.75 Estas contêm inúmeras disposições de obrigatoriedade de tratamento 72 Por exemplo, Anthony Briggs vs. Trinidad e Tobago, Processo 11.815, Relatório Nº 44/99; Neptune v Haiti, Série C, Nº 180 (Julgamento em 06 de maio de 2008). 73 Lei de Execução Penal 7209/84. 74 Ibid., Artigo 66. 75 Regras Mínimas para o Tratamento de Presos, Adotadas pelo Primeiro Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção de Crimes e Tratamento de Criminosos, realizado em Genebra em 1955 e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social por meio das suas Resoluções 663 C (XXIV) de 31 de julho de 1957 e 2076 (LXII) de 13 de maio de 1977. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 27 individualizado, protegendo os direitos substantivos e processuais dos reclusos e garantindo-lhes alimentação adequada, assistência médica, jurídica, educacional, social, religiosa e assistência material, bem como o contato com o mundo exterior, educação, trabalho e direito de voto. As Regras Mínimas da ONU afirmam que a principal finalidade da prisão deve ser a ressocialização e a reabilitação, ao invés da punição. Elas também incentivam os juízes a utilizarem, sempre que possível, penas alternativas à prisão, como multas, serviços comunitários e penas restritivas de direitos. Em novembro de 1998, uma nova lei ampliou o leque de penas não privativas de liberdade disponíveis para serem aplicadas pelos juízes a infratores não violentos. 76 2.25 Tanto a Constituição Brasileira quanto o Código de Processo Penal recorrem à linguagem do direito internacional dos direitos humanos relativa à presunção de inocência e às garantias conferidas àqueles em prisão provisória ou em cumprimento de pena. O artigo 9º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), do qual o Brasil é signatário, afirma que “Todo o indivíduo preso ou detido sob acusação de uma infração penal será prontamente conduzido perante um juiz ou uma outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá direito a ser julgado dentro de um prazo razoável ou libertado. Não deve ser regra geral a de que pessoas que aguardam julgamento sejam detidas em prisão provisória, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias de que as mesmas comparecerão ao julgamento, a qualquer outra fase do processo judicial e, se for o caso, para a execução da sentença.”77 2.26 Indivíduos que não foram condenados por um crime estão sendo privados de liberdade como medida cautelar e não como forma de punição. Essas prisões deverão acontecer apenas quando se possa demonstrar que há, objetivamente, razões para pensar que tais indivíduos interfeririam em seus próprios julgamentos. A presunção de inocência contida no artigo 9º do PIDCP é reforçada pelo artigo 10, que afirma que presos não condenados têm direito a tratamento diferenciado. “Réus serão, salvo circunstâncias excepcionais, separados dos já condenados e devem ser submetidos a tratamento adequado a sua condição de pessoa não condenada.”78 No entanto, como mostra a discussão acima, muitos desses direitos e garantias são ignorados na prática. 2.27 Não apenas os juízes muitas vezes não conseguem oferecer supervisão judicial eficaz do sistema como um todo, mas também existem vários relatos críveis de que, por vezes, eles são coniventes com violações de direitos fundamentais. Um relatório da Anistia Internacional, por exemplo, tem casos documentados nos quais agentes prisionais disferiam agressões aos presos enquanto um juiz assistia. Ademais, seus pesquisadores também tiveram o acesso a uma prisão efetivamente negado pelo juiz responsável pela supervisão das sentenças, pelo Conselho de Assuntos Penais, pelos advogados da assistência judiciária local, os quais pareciam determinados a evitar que eles falassem diretamente com os presos em um centro de detenção em que vários presos haviam sido mortos e outras dúzias de presos feridos durante episódios violentos nos últimos nove meses.79 2.28 O relatório da Anistia Internacional observou que, “não há uma rotina e uma coleta 76 Lei 9.714/98, que alterou a Lei 7209/84. 77 Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado e aberto para assinatura, ratificação e adesão pela Resolução da Assembléia Geral 2200A (XXI) de 16 de dezembro de 1966, que entrou em vigor em 23 de março de 1976. 78 Ibid. 79 Ibid. 28 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 abrangente de dados sobre as mortes ocorridas sob a custódia do Estado, e a maioria delas permanece sem investigação. A impunidade quase que total permite à polícia e aos agentes penitenciários que continuem a infligir tortura e maus-tratos àqueles sob sua custódia. Os presos acabam sem ter a quem recorrer para relatar essas graves violações de direitos humanos porque as prisões e os estabelecimentos penais muito raramente são inspecionados, e uma série de prisões e delegacias de polícia têm limitado ou negado o acesso tanto aos familiares quanto às organizações de direitos humanos. Muitos presos têm medo de relatar a tortura ou os maus-tratos ou pedir tratamento médico, porque o Instituto Médico Legal está estruturalmente ligado ao aparelho de segurança pública. Em alguns casos, os presos sofreram represálias e outros tipos de violência, como resultado de terem apresentado uma denúncia. É, portanto, muito raro que violações de direitos humanos cometidas em uma prisão ou em uma delegacia de polícia resultem numa investigação conduzida adequadamente, em um processo criminal ou na condenação e punição dos responsáveis.”80 2.29 A maioria dos presos condenados no Brasil nunca passam por um regime aberto ou semiaberto; ao invés disso, eles cumprem sua pena inteira em uma penitenciária de segurança máxima ou mesmo em uma cadeia. Poucos juízes exercem suas responsabilidades de realizar inspeções prisionais, e as inspeções que ocorrem, muitas vezes, são superficiais. Como é discutido abaixo, outros organismos de controle não são muitas vezes vistos como imparciais ou independentes pelos presos, que têm, portanto, medo de relatar-lhes queixas. Isso parece não só estar em violação das obrigações do Brasil previstas no direito internacional dos direitos humanos, mas também em suas próprias leis e na Constituição. 2.30 Isso sugere que a reforma do sistema de justiça criminal não pode ser realizada simplesmente através de legislação. Os atrasos crônicos na condução dos julgamentos, a falta de recursos para a Defensoria Pública, a corrupção dentro do sistema penal e as atitudes preconceituosas por parte de alguns policiais, juízes e promotores públicos requerem reformas mais profundas. As falhas freqüentes do Estado brasileiro em garantir que os direitos contidos em suas próprias leis e Constituição sejam respeitados na prática é sintomático de um fracasso ainda maior de suas instituições de governança encarregadas desta tarefa. Antes de discutí-las mais detalhadamente é necessário explicar o contexto histórico e político em que as mesmas se desenvolveram. Contexto histórico 2.31 Um dos paradoxos da sociedade brasileira é que enquanto o Estado adere formalmente a normas democráticas liberais, os órgãos encarregados de defendê-las frequentemente as negligenciam. Governos brasileiros sucessivos têm uma longa história de implementação de reformas no plano formal, enquanto mantêm políticas, práticas e instituições que repousam sobre a negação de direitos básicos. Este contexto é crucial para a compreensão dos desafios atuais que enfrentam os indivíduos envolvidos na reforma da justiça criminal. 2.32 A primeira Constituição do Brasil, de 1824, foi inspirada nas constituições revolucionárias de Portugal (1822) e França (1814), e forneceu uma estrutura básica para uma governança constitucional, a separação de poderes e a independência do Judiciário, que sobreviveram com 80 Ibid. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 29 modificações até a presente data.81 O primeiro Código de Justiça Criminal do Brasil, de 1832, previa a eleição de juízes locais, um sistema de júri e o direito de habeas corpus. Em 1871, os Promotores de Justiça receberam o duplo mandato de fazer cumprir a lei e proteger os direitos dos “fracos e indefesos” da sociedade brasileira.82 2.33 Contudo, o Brasil foi o último país no mundo a abolir a escravidão, em 1888, vinte e cinco anos após a abolição nos Estados Unidos. Embora a causa do abolicionismo fosse uma questão altamente considerada na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, o seu impacto no debate político no Brasil foi relativamente menor. O governo brasileiro simplesmente adotou uma política de repetidas promessas de tomar medidas eficazes para acabar com a escravidão, mas, na prática, fazia o mínimo possível pelo maior tempo que podia. A frase “Para Inglês Ver”, o que ainda é uma expressão comum no Brasil, é deste período. Como Roberto Schwarz escreveu, isso tem raízes históricas profundas dentro da sociedade brasileira: As idéias liberais não podiam ser postas em prática, mas também não podiam ser descartadas. Elas se tornaram parte de uma situação prática especial, que iria se reproduzir e não deixá-las inalteradas. . . . . Diante dessas idéias, o Brasil, a colônia da escravidão, estava envergonhado – por serem elas consideradas as idéias daquela época - e ressentido, por elas não terem nenhuma utilidade. Mas elas também foram aprovadas com orgulho como um adereço, prova de modernidade e distinção. . . Conhecer o Brasil era saber destes deslocamentos experimentados e praticados por todos como uma espécie de destino para o qual não havia nenhum nome apropriado já que o uso inadequado de nomes era parte de sua natureza.83 2.34 Advogados brasileiros progressistas e ativistas políticos realmente lutaram pela liberdade dos escravos, e houve batalhas jurídicas paralelas às rebeliões de escravos e fugas em massa. Como o advogado de direitos humanos brasileiro, Oscar Vilhena Vieira, observa, o momento fundador da advocacia de interesse público no Brasil pode ser datada de 1869, quando um ex-escravo anunciou em vários jornais sua atividade de advogado pro bono em casos relacionados com a libertação de escravos. Isto iniciou uma tradição nas camadas mais liberais da profissão jurídica no Brasil de “resistir à opressão através de meios legais e da utilização de estratégias jurídicas para promover e avançar a justiça social.” 84 Seria errado, porém, superestimar a influência que tais ativistas tiveram na ampla sociedade brasileira, que se manteve predominantemente conservadora durante a maior parte de sua história. Embora o Brasil tenha sido marcado por um violência considerável, a maioria das suas principais mudanças constitucionais foram atingidas de forma pacífica. O país transformou-se de colônia, em um país independente e, em seguida, de Império em República; de República em ditadura e de ditadura em uma democracia com poucas perturbações sociais. A independência veio em 1822, quando o príncipe herdeiro português recusou um “pedido” do Parlamento de Portugal para que voltasse à casa e declarou-se Imperador Pedro I do Brasil. O Império brasileiro durou até 1889, quando um grupo de oficiais do Exército forçou o seu filho, Pedro II, a renunciar e exilar-se. A Primeira República estendeu-se até 1930, quando foi 81 Boris Fausto, História do Brasil, Universidade de São Paulo, 2000, p. 80-87. 82 Lei Nº 2.040, de 28 de setembro de 1871. 83 Roberto Schwarz, Idéias mal colocadas: ensaios sobre a cultura brasileira, Verso, 1992, p.28. 84 Oscar Vilhena Vieira, “Direito de Interesse Público. Uma Perspectiva Brasileira”, UCLA Journal of International Law & Foreign Affairs. 224, 2008, p.223. 30 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 deposta por um golpe pacífico que introduziu o Estado Novo, que durou até 1945, quando a democracia foi restaurada. Outro golpe, em 1964, levou o país a vinte anos de ditadura, que deu lugar à abertura, a qual construiu o caminho para a eventual restauração da democracia de 1982-1989. 2.37 Essa ausência de uma ruptura acentuada acompanhando mudanças de regime ocorreu, provavelmente, porque o processo de construção de um Estado-nação moderno deu-se, principalmente, no nível da elite, com pouco envolvimento da grande massa do povo brasileiro. O Estado pode ter se beneficiado dessa continuidade institucional, mas ela também ajudou a preservar uma certa mentalidade no interior de suas instituições de governança que resiste até os dias de hoje. Alfred Montero, por exemplo, argumenta que, durante as últimas duas décadas, “[o] que é mais notável sobre a transição para a democracia brasileira é como foram sem sucesso os esforços para deslocar as elites conservadoras do período burocrático-autoritário.”85 Isso será discutido mais a frente, na parte deste relatório que trata da estrutura legal e constitucional do Brasil. 2.38 A força policial do Brasil pode ser datada da época dos bandeirantes e das milícias que ajudaram a colonizar e defender o país.86 Os primeiros eram os grupos mercenários de caçadores de escravos e exploradores.87 As últimas tornaram-se a base da Guarda Nacional brasileira e eram geralmente organizadas com coronéis em cada distrito. O coronel tendia a ser o membro mais poderoso da elite local, e alguns eram descendentes dos Capitães originais que tinham sido licenciados pela Coroa Portuguesa para colonizar o Brasil. Seus descendentes continuam a exercer uma influência importante na política brasileira contemporânea. 2.39 As primeiras tentativas de organizar uma força policial especializada datam da chegada da Corte Real portuguesa no Brasil – que fugia da invasão do Exército napoleônico - em 1808. A Intendência Geral de Polícia tornou-se a base da polícia civil atual, enquanto uma guarda militar com funções policiais foi formada em 1809 e encarregada da manutenção da ordem pública. Como Mercedes Hilton observou, o objetivo principal da polícia era conter as ameaças de revoltas dos escravos, punir a insurreição e capturar fugitivos.88 Estados individuais começaram a organizar as forças policiais militares locais, que foram sendo gradualmente centralizadas em uma única estrutura. Em 1871, as funções da polícia e do Judiciário foram formalmente separadas e dois tipos de força policial foram criadas em nível local. 2.40 A responsabilidade pela maior parte das questões de policiamento hoje está nas mãos dos estados, embora haja também uma força policial federal, que lida com questões interestatais, como o terrorismo, o crime organizado, e o controle de fronteiras. A divisão básica entre as duas forças é que a polícia militar responde aos crimes enquanto estão em andamento, enquanto a polícia civil investiga-os após terem ocorrido. Ambas as forças estão sob o controle do governador do estado, geralmente sob a autoridade de um secretário de segurança pública, mas a rivalidade entre elas é notória. Os policiais civis são oficiais à paisana, encarregados das investigações criminais - bem como de algumas funções administrativas, tais como a emissão de documentos de identificação e licenças -, enquanto a Polícia Militar é responsável pelo 85 Alfredo Montero, Política Brasileira, Editora Polity, 2005, p. 61. 86 E. Bradford Burns, Uma História do Brasil, Columbia University Press, 1993. 87 Joseph A Page, Os Brasileiros, DA Capo Press, 1995. 88 Mercedes Hinton, “Uma realidade distante: policiamento democrático na Argentina e no Brasil”, em Justiça Criminal, Editora Sage, 2005, p.8. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 31 patrulhamento ostensivo, manutenção da ordem e prevenção do crime. Ambas as forças podem prender suspeitos capturados no ato de cometer um crime ou por força de um mandado de prisão emitido por um juiz. 2.41 Há uma tradição muito forte de justiça sumária no Brasil, a qual continuou por muito tempo após a abolição da escravidão.89 Thomas Holloway sustenta que “espancamentos e detenções arbitrárias” eram considerados como uma parte essencial da estratégia da polícia para conteção e punição. Essas práticas continuaram mesmo depois que a autoridade judicial incumbida de administrar “detenção correcional” e “castigos corporais” foi removida da polícia em 1871.90 Ele também aponta que as pessoas eram freqüentemente presas por prática de capoeira, que foi formalmente banida entre 1890 e 1930, e que a polícia usou esse poder de forma desproporcional contra brasileiros pobres e negros.91 Boris Fausto observa que “Na média , entre 1892 e 1916, contravenções (vadiagem, desordem e embriaguez) foram responsáveis por quase 80 por cento de todas as prisões; por cerca de 11 por cento dos crimes contra a propriedade e em torno de 8 por cento dos crimes cometidos mediante violência em São Paulo.92 Teresa Caldeira afirma que “as práticas de violência e arbitrariedade foram constitutivas da polícia brasileira, em graus variados, desde a sua criação, e que o policiamento tem sido amplamente destinado a controlar as camadas mais pobres e vulneráveis da sociedade brasileira. Tais práticas foram autorizadas a continuar porque a fragilidade da democracia brasileira significava que suas vítimas eram em grande parte impotentes, enquanto os brasileiros ricos permaneceram intocados” ditadura e a transição para a democracia 2.42 A preocupação sobre o tratamento de presos entre os grupos brasileiros de direitos humanos é, em parte, uma herança da ditadura. A polícia foi colocada diretamente sob o controle do Exército entre 1964 e 1985 e assumiu um papel abertamente político. Tortura, prisão e perseguição foram oficialmente políticas sancionadas para lidar com a “ameaça da subversão comunista” e a polícia teve um papel fundamental na implementação dessas políticas. 2.43 O sistema prisional também estava subordinado à política de segurança nacional, e a prisão arbitrária de suspeitos de subversão contribuiu significativamente para a superlotação das cadeias públicas, um legado do qual nunca se recuperaram.93 O fato dos tribunais - e parlamento – terem continuado a trabalhar, dando uma aparência de normalidade democrática à regra dos generais, os comprometeu profundamente. Embora o Judiciário brasileiro tenha declarado o Ato de Segurança Nacional de 1968 inconstitucional, revelou-se, em grande medida, conivente com a ditadura. 2.44 Os militares aprovaram 17 atos institucionais e 100 atos complementares, reduzindo a independência do Judiciário e retirando os poderes dos tribunais para revisão judicial de suas ações. Em um nível mais básico, os tribunais não conseguiram garantir a justiça para as 89 Guaracy Mingardi, Tiras, gansos e trutas: cotidiano e reforma na polícia civil, Scritta, 1992. Ver também Roberto Kant de Lima, Teoria legal e prática judicial: paradoxos do trabalho policial na cidade do Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, 1986, citada em Caldeira, p.110. 90 Thomas Holloway, Policiando o Rio de Janeiro: repressão e resistência em uma cidade do século XIX, Stanford University Press, 1993, p.284. 91 Ibid., p. 223-228. Ver também Thomas E. Skidmore, Preto no Branco: Raça e Nacionalidade no Pensamento Brasileiro, Duke University Press, 1993. 92 Boris Fausto, Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo em 1880 – 1924, Brasiliense, 1984, p.46. 93 Adorno e Salla, 2007. 32 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 muitas vítimas da ditadura. Como James Holston e Teresa Caldeira observam, “durante todo o período da ditadura militar, os tribunais rotineiramente ouviam e gravavam depoimentos e acusações de tortura e outros procedimentos ilegais, tais como prisão sem fundamento. . . . No entanto, apesar da gravação cuidadosa dos tribunais, nenhuma ação foi tomada para prevenir a ocorrência de violações ou para punir os responsáveis.”94 Uma aparência legal e democrática encobria as violações sistemática dos direitos fundamentais das pessoas comuns. 2.45 Por outro lado, muitos dos presos políticos foram os filhos e as filhas de brasileiros de classe média que passaram a desempenhar papéis de liderança na transição do país para a democracia. Presos políticos observaram, através de suas próprias prisões, o número de presos comuns que haviam sido detidos sem o devido processo legal, ou por períodos superiores aos limites de suas penas.95 A agitação dos presos políticos dentro de prisões brasileiras ajudou a inspirar a formação do Comando Vermelho, que começou como um grupo de defesa dos direitos dos presos, porém evoluiu para a organização criminosa de tráfico de drogas mais famosa do Rio de Janeiro. 2.46 Campanhas contra a tortura e as mortes na prisão também foram importantes na mobilização da oposição à ditadura em toda a sociedade brasileira. Em 1969, a Confederação Nacional dos Bispos criou uma Comissão de Justiça e Paz, que por sua vez, formou uma rede de advogados para defender os direitos dos presos políticos, em um sistema pro Bono. Mais de 250 centros de defesa de direitos humanos foram criados, em grande parte sob a égide da Igreja Católica. O primeiro relatório da Anistia Internacional sobre o Brasil, publicado em 1979, baseou-se substancialmente em informações provenientes de tais centros, que também foram publicadas separadamente no relatório seminal sobre tortura, Brasil: Nunca Mais.96 O Brasil tornou-se um reduto da “teologia da libertação” e os grupos de direitos humanos foram também fortemente associados com o “novo” sindicalismo, e com os movimentos de trabalhadores sem-terra e ativistas ambientais, que formavam o núcleo do Partido dos Trabalhadores (PT). Enquanto o país retornava à democracia, os políticos brasileiros eram obrigados a prestar cada vez mais atenção aos direitos humanos. O papel proeminente que lhes foi atribuído pela Constituição de 1988 é, em grande parte, resultado dessas pressões. direitos humanos, criminalidade e discurso político 2.47 Enquanto isso, a polícia voltou a perseguir seus “suspeitos de costume” - em geral oriundos da periferia da sociedade brasileira: pobres, sem terra, negros, sem-teto e desempregados - usando o tipo de tática descrita acima. Essa mudança coincidiu com um súbito aumento dos crimes violentos, provocado por uma grave crise econômica, em que uma combinação de hiperinflação seguida por um colapso no crescimento empobreceu milhões de brasileiros. Entre 1980 e 1990, o salário mínimo real diminuiu 46 por cento e a renda per capita caiu 7,6 por cento, sendo este período muitas vezes chamado de a “década perdida”. 94 James Holston e Teresa Caldeira, “Democracia, lei e violência: disjunções da cidadania brasileira”, em Felipe Aguero e Jerrey Stark, Falhas na democracia na América Latina pós-transição, North-South Center Press, 1998, p.286. 95 Ver, por exemplo, Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere, citado em Elizabeth Canceli, O mundo da violência: a polícia da era Vargas, Universidade de Brasília, 1993, pp. 206-215. 96 Paulo Evaristo Arns, Brasil: Nunca Mais, Vozes, 2003. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 33 2.48 O choque da crise econômica foi amplificado por ter sido precedido por um período de crescimento igualmente dramático. Entre 1870 e 1980, a economia brasileira cresceu a uma taxa maior do que a de praticamente qualquer outro país no mundo. Durante a década de 1950, o Brasil estava em uma trajetória capaz de ultrapassar os Estados Unidos até o final do século XX. O popular Presidente Juscelino Kubitschek prometeu que seu país alcançaria “cinqüenta anos em cinco” e criou uma cidade totalmente nova, a capital – Brasília - no interior do país. Na verdade, tal taxa de crescimento não era sustentável, e as pressões inflacionárias e o crescimento da dívida pública foram responsáveis por algumas das causas do golpe de 1964. O crescimento econômico foi retomado durante a ditadura, após um período de contenção salarial brutalmente imposto, mas as dívidas acumuladas durante esse período levaram efetivamente à falência do país por volta de 1983.97 Entre 1940 e 1980, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 6,9 por cento ao ano (4 por cento per capita). Entre 1980 e 1992, o PIB cresceu apenas 1,25 por cento ao ano.98 2.49 O Brasil foi também objeto de uma grande mudança social, que o transformou de uma sociedade predominantemente rural para uma sociedade predominantemente urbana, no espaço de poucas décadas. 99 Entre 1950 e 1980, cerca de vinte milhões de pessoas saíram da zona rural para as cidades; uma das maiores movimentações da história mundial. Alguns brasileiros também se tornaram muito ricos, e a sociedade se estratificou, tornando-se o que é hoje o país importante mais desigual do mundo. A proporção da renda apropriada pelo um quinto mais rico da população cresceu de 54 por cento em 1960 para 62 por cento em 1970, 63 por cento em 1980, e 65 por cento em 1990, enquanto que a metade mais pobre caiu de 18 por cento em 1960, para 15 por cento em 1970, 14 por cento em 1980 e 12 por cento em 1990.100 Muitos dos novos pobres urbanos assentaram-se em barracos construídos por eles mesmos, agrupados em terrenos baldios. Essas favelas não tinham os serviços sociais básicos, e logo caíram sob o controle de quadrilhas de crime, que defendiam seu território através da violência. O homicídio é hoje a principal causa de morte de pessoas entre 15 e 44 anos, e as vítimas são majoritariamente jovens, do sexo masculino, negros ou mulatos e pobres. 2.50 Uma análise do envolvimento de crianças no tráfico de drogas, realizada por Luke Dowdney em 2003, concluiu que os “níveis extremos de violência armada estão gerando uma quantidade de mortes relacionadas a armas de fogo, na cidade do Rio de Janeiro, comparável, se não maior, ao número de mortes relacionadas a conflitos armados.”101 Ele também observou que a “utilização de armas de alta potência e os tipos de violência armada causados por disputas entre facções e por confrontos entre a polícia e as facções do Rio de Janeiro” significa que “existem grandes semelhanças entre as crianças empregadas nas facções ligadas às drogas [na cidade] e “crianças soldados”, em quase todos os aspectos funcionais e definitivos”. Outro estudo realizado por Dowdney sugeriu que o termo “violência armada organizada”102 deveria ser usado para descrever situações de “nem guerra nem paz” e que o sistema de Justiça Criminal não foi 97 Francisco Vidal Luna e Herbert Klein, O Brasil Desde 1980, Cambridge University Press, 2006, p.40. 98 Caldeira, 2000, p.45. 99 Michael Reid, O Continente esquecido: A batalha pela alma da América Latina, Yale University Press, 2007. 100 A proporção de renda nas mãos do um por cento mais rico da população brasileira aumentou de 13,0 por cento em 1981 para 17,3 por cento em 1989, e para 15,5 por cento em 1993. Um estudo recente, comparando cinquenta e cinco países, mostrou que embora na maioria dos países a renda dos 10 por cento mais ricos seja em média 10 vezes maior do que a dos 40 por cento mais pobres, no Brasil ela é quase trinta vezes maior. 101 Luke Dowdney, As crianças do tráfico de drogas, um estudo de caso de crianças na violência armada organizada no Rio de Janeiro, Letras, 2003, p.117. 102 Ibid. p.117 e p.254. 34 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 capaz de lidar com a dimensão do problema. Ele recomendou a adoção de propostas - como os projetos de Desarmamento, Desmobilização e Reintegração (DDR) que foram desenvolvidos em zonas de conflito oficialmente reconhecidas.103 2.51 O Brasil não coletou estatísticas oficiais de criminalidade para o país até o final de 1990. No entanto, os crimes violentos no estado de São Paulo aumentaram com relação à proporção do total de crimes de cerca de 20 por cento em 1980 para 30 por cento em 1984 e para 36 por cento em 1996.104 A taxa de homicídios disparou de cerca de 15 a cada 100.000 em 1981 para 45 a cada 100.000 em 1995 e 54 a cada 100.000 em 2002. No Rio de Janeiro, a taxa de homicídios chegou a um nível descomunal de 61 a cada 100.000 pessoas em 1994, embora tenha diminuído desde então. A taxa de homicídios (a cada 100.000 pessoas) no Brasil, em geral, quase triplicou - para cerca de 30 a cada 100.000 em 2002; e um total de 49.570 homicídios foram documentados no Brasil naquele ano.105 2.52 O aumento de crimes violentos teve um enorme impacto no discurso político durante a transição para a democracia. A defesa dos direitos humanos tornou-se cada vez mais associada à defesa da bandidagem, ou criminalidade. Políticos que foram vistos como “moles com o crime” - porque defendiam noções como o respeito pelos direitos fundamentais dos suspeitos, ou agiam para conter os excessos por parte da polícia e agentes prisionais - foram preteridos por aqueles que defendiam medidas mais duras. Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, e Franco Montoro, em São Paulo, que foram eleitos governadores em 1982 com plataformas que incluíam o respeito pelos direitos humanos, tornaram-se cada vez menos populares, já que seus esforços para conter a onda de crimes falharam. Os seus sucessores deram apoio verbal para o que foram efetivamente políticas de atirar-para-matar, mas estas não se mostraram mais eficazes na redução da taxa de criminalidade e levaram a atrocidades altamente divulgadas. O resultado foi que a política de segurança tornou-se cada vez mais politizada, enquanto os governadores alternavam entre abordagens “dura” e “suave”. Como Mercedes Hinton notou, “[e]ntre esses caprichos políticos, mudando os padrões e os sinais contraditórios, é difícil imaginar como uma agenda de reformas poderia enraizar-se.’106 2.53 O governador Montoro de fato introduziu algumas reformas importantes, como a dissolução de uma notória unidade especial de polícia, a ROTA, e a obrigação da manutençao pela polícia de registros sobre o seu uso de armas e balas, o que diminuiu o número de assassinatos cometidos pela polícia. No entanto, seus sucessores adotaram uma abordagem muito diferente, restabelecendo a ROTA e apoiando o número de assassinatos realizados pela polícia. Luiz Antonio Fleury Filho, por exemplo, que primeiro foi secretário de segurança pública e depois governador, declarou, em 1989, “[o] fato de que este ano houve mais mortes causadas pela PM significa que eles estão mais ativos. Quanto mais policiais nas ruas, maior a possibilidade de confrontos entre criminosos e policiais. . . Do meu ponto de vista, o que a população quer é que o policial seja corajoso”.107 Outros políticos adotaram o slogan “criminoso bom é criminoso 103 Luke Dowdney, Nem guerra nem paz, comparações internacionais de crianças e jovens na violência armada organizada, Viva Rio, sem data. 104 Caldeira, 2000, p.119. 105 Relatório Semanal de Morbidade e Mortalidade, Tendências e Características Homicidas – Brasil, 1980—2002, 05 de março de 2004. Números citados do Ministério da Saúde do Brasil. Ver também Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, “Justiça criminal e segurança pública no Brasil: causas e consequências da exigência de punições por parte do público”, Revista Brasileira de Segurança Pública, fevereiro/março de 2009, p.97, que afirma que o número de mortes em 2003 atingiu 51.043. 106 Hinton, 2005, p.87. 107 Folha de São Paulo, 28 de novembro de 1989. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 35 morto” na disputa de cargos públicos.108 2.54 Essas atitudes persistem até hoje. Em seu relatório de 2007, o Relator Especial da ONU, Philip Alston, observou que “[o] nível de tolerância da matança de “criminosos”, e até seu incentivo público por funcionários governamentais de alto nível, certamente está relacionado ao elevado número de mortes pela polícia, e porque elas são tão inadequadamente investigadas”. Alston observou que o então Secretário de Segurança Pública do Rio referiu-se à polícia matando inocentes durante as operações de segurança usando a analogia de quebrar ovos para fazer um omelete.109 Sua primeira recomendação foi a de que “Governadores, Secretários de Segurança Pública, Chefes de Polícia e Comandantes deveriam tomar a iniciativa de tornar publicamente claro que existirá tolerância zero para o uso de força excessiva e de execução pela polícia de suspeitos de crimes.”110 2.55 Violência policial não é o foco deste relatório, mas é claramente impossível construir um sistema de Justiça Criminal funcional, com base no império da lei, enquanto a polícia é frequentemente acusada de torturar e matar suspeitos - ou simplesmente pessoas pobres, que podem ser facilmente categorizadas como tais. Muitos daqueles formalmente acusados de um crime podem ser condenados unicamente, ou principalmente, com base nas declarações que fizeram sob custódia da polícia, e assim os inúmeros relatos confiáveis de que a tortura é generalizada e sistemática são preocupantes. O acesso à justiça e o direito a um julgamento justo perdem o significado, a não ser que sejam introduzidas medidas de segurança suficientes para proteger os presos da tortura e de outras formas de maus-tratos, e lhes proporcionar o acesso rápido à assessoria jurídica e representação legal. 2.56 A polícia também tem se envolvido em acabar com rebeliões nas prisões. Talvez o incidente mais famoso tenha sido em outubro de 1991, quando policiais militares mataram 111 presos no Pavilhão 9 da Casa de Detenção do Carandiru, o que posteriormente foi considerado uma violação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.111 Muitos dos presos foram mortos por balas de metralhadoras disparadas à queima-roupa das portas de suas celas. 112 Os presos sobreviventes estavam todos nus e muitos foram atacados por cães especialmente treinados para morder os órgãos genitais. Alguns foram esfaqueados pela polícia. Outros foram forçados a assistir às execuções e, em seguida, transportar os corpos dos mortos para pontos de coleta, e limpar o sangue, porque a polícia estava com medo de contrair AIDS. Foram publicadas fotos mostrando essas cenas. No entanto, pesquisas de opinião revelaram um apoio considerável às ações dos policiais.113 O comandante responsável da polícia foi posteriormente incluído em um grupo de candidatos que se apresentaram às eleições para o estado de São Paulo, com uma plataforma de segurança mais rígida. Três destes candidatos foram eleitos, todos eles usaram o número “111” para identificá-los na cédula de voto. Como discutido acima, em resposta a este massacre, os presos sobreviventes formaram o Primeiro Comando da Capital (PCC), que é hoje a mais poderosa organização criminosa de São Paulo. 108 Anistia Internacional, 1999. 109 A/HRC/11/2/Add.2 futuro, 28 de agosto de 2008, par. 26. 110 Ibid., par. 77. 111 Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Nº 34- 00, Processo 11.291, datado de 13 de abril de 2000. 112 Anistia Internacional, A morte chegou: massacre na prisão da Casa de Detenção de São Paulo, Anistia Internacional, 1993. 113 Caldeira, p.177. Uma pesquisa de opinião realizada pela Folha de São Paulo mostrou que um terço das pessoas que responderam aprovavam, ao mesmo tempo em que outra pesquisa realizada pelo Estado de São Paulo também registrou aprovação. 36 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 medo do crime e enfraquecimento do Estado de direito: Um círculo vicioso 2.57 Foi criado no Brasil um círculo vicioso, em que o sentimento público de medo do crime leva ao apoio de métodos ilegais para lidar com o mesmo, o que enfraquece ainda mais o Estado de Direito, e alimenta um clima que gera mais crimes violentos. Em 1992, a polícia matou 1.470 pessoas em São Paulo. Embora esse tenha sido o pico de homicídios, Teresa Caldeira afirma que o medo do crime permaneceu uma obsessão para os moradores de São Paulo na década de 1990, e daí em diante. “A vida cotidiana e a cidade mudaram por causa do crime e do medo, e essa mudança reflete-se nas conversas diárias. Medo e violência, coisas difíceis de elaborar, fazem o discurso proliferar e circular. A conversa sobre o crime - que é assunto de todos os dias, de comentários, debates, narrativas e brincadeiras que têm o crime e o medo como temas - é contagiante. Uma vez que um caso é descrito, muitos outros estão suscetíveis a seguir. A conversa sobre o crime é também fragmentada e repetitiva. Ela apresenta muitas variações, pontuando-as, repetindo a mesma história, ou variações dela, geralmente usando apenas alguns objetos narrativos. Apesar de sua repetição, as pessoas nunca estão entediadas. Ao contrário, eles parecem compelidas a continuar falando sobre o crime, como se a análise interminável de casos pudesse ajudá-las a lidar com suas experiências desconcertantes, ou com a natureza arbitrária e inusitada da violência. A repetição de histórias, no entanto, só serve para reforçar os sentimentos de perigo, insegurança e agitação das pessoas. Assim, a fala do crime alimenta um ciclo em que o medo é tanto pensado quanto reproduzido, e a violência é tanto atacada quanto amplificada.”114 2.58 A única pesquisa de vitimização do crime publicada no Brasil data de 1988, e foi realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Constatou-se que na região metropolitana de São Paulo mais de 60 por cento das vítimas de roubo e furto não relataram esses crimes à polícia, com mais de 40 por cento destes citando a sua visão negativa da polícia como o motivo para isto. Daqueles que tinham sido vítimas de agressões físicas, mais de 55 por cento não as denunciaram; com uma taxa sensivelmente mais elevada de subnotificação por mulheres do que homens (62 por cento contra 56 por cento).115 Outra pesquisa, a partir de meados da década de 90, relatou que 72 por cento dos brasileiros envolvidos em infrações penais não usam o sistema judicial.116 De acordo com uma pesquisa mais recente, 50 por cento dos brasileiros afirmam que eles sequer denunciam crimes à polícia, porque seria “perda de tempo”.117 Uma pesquisa global sobre proteção e segurança realizada pelo Instituto Vera de Justiça, em 2003, constatou que o Brasil é o país onde as pessoas dizem que têm mais medo de andar pelas ruas à noite (seguido pela África do Sul, Bolívia, Botsuana, Zimbábue e Colômbia, nessa ordem).118 Em contrapartida, o Brasil tem a segunda taxa mais baixa de relatos à polícia de crimes de roubo (19 por cento em comparação com 37 por cento na África do Sul, 45 por cento na Argentina, 59 por cento na Austrália e 69 por cento no EUA), refletindo um nível de desconfiança da polícia normalmente observado em países que não respeitam as regras democráticas. 114 Caldeira, 2000, p.19. 115 Ibid., p.107. 116 James Holston e Teresa Caldeira, “Democracia, lei e violência: disjunções da cidadania brasileira”, em Felipe Aguero e Jerrey Stark, Linhas de falha da democracia na América Latina pós-transição, North-South Center Press, 1998, p.274. 117 William C Prillaman, Crime, Democracia e Desenvolvimento na América Latina, Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, Documentos de Políticas sobre as Américas, Volume XIV, Estudo 6, junho de 2003, p. 9. 118 Medindo o progresso no caminho da segurança e justiça: um guia global para a concepção de indicadores de desempenho no judiciário, Instituto de Justiça Vera, novembro de 2003. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 37 2.60 Muitos policiais também estão envolvidos em corrupção e extorsão, e existem muitos relatos confiáveis de que policiais fora de serviço também estão profundamente relacionados com esquadrões da morte ou com atividades das milícias em diversas partes do país. Por exemplo, o Ministério Público do estado de Pernambuco estimou que, em 2008, cerca de 70 por cento dos homicídios eram cometidos por esquadrões da morte, que se acredita estarem ligados à polícia. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito federal constatou que os grupos de extermínio são, na sua maioria, compostos de agentes públicos (policiais e agentes penitenciários), e que 80% dos crimes cometidos por grupos de extermínio envolvem policiais ou ex-policias.119 2.61 Enquanto isso, a transição para a democracia trouxe outro conjunto de problemas, associados à corrupção de funcionários públicos e a crimes de colarinho branco, bem como a sensação de que o sistema de justiça brasileiro favorecia os ricos. Uma pesquisa, em meados dos anos 90, mostrou que mais de 95 por cento dos entrevistados concordaram que uma pessoa pobre seria tratada com mais rigor pelos tribunais do que um rico.120 2.62 Como discutido na próxima seção deste relatório, a Constituição de 1988 conferiu ao Judiciário o direito de gerir seus próprios assuntos financeiros, administrativos e disciplinares. Até o início dos anos 90, tornou-se evidente que os quadros superiores do Judiciário aproveitaram- se dessa falta de fiscalização para definir salários extremamente generosos, pensões e recursos humanos para si próprios. Nos cinco tribunais superiores, 88 juízes seniores eram servidos por 5.000 funcionários, e suas sedes eram dotadas de uma piscina e um salão de baile. Os juízes ameaçaram greve por conta de uma lei que proibía a prática de contratação de parentes não qualificados, em 1996, e fizeram greve contra a criação de uma subcomissão do Senado para investigar denúncias de corrupção, em 1999. A revelação naquele ano de que 75 por cento dos custos de um novo e extremamente caro Tribunal do Trabalho de São Paulo havia sido desviado por um juiz aposentado aprofundou a percepção pública de que os juízes eram a lei para eles mesmos.121 A proteção constitucional conferida a uma série de direitos sociais e econômicos também tem gerado uma série de debates nos tribunais sobre uma série de questões controversas, que têm beneficiado principalmente os brasileiros mais ricos.122 O Estado brasileiro é altamente corporativista e tem, tradicionalmente, concedido uma série de benefícios econômicos para certas categorias - como a dos funcionários públicos - como um meio de sustentação de sua base política. Os tribunais têm sido usados para defender os direitos, quase incontestáveis, dos funcionários públicos à segurança no emprego, e à sustentabilidade financeira das pensões, que são extremamente generosas no Brasil, e que favorecem os ricos. A corrupção do Judiciário, seus conhecidos problemas no combate ao crime do colarinho branco, e sua visível cumplicidade no agravamento da situação social e econômica do país, aprofundaram o pessimismo de muitos brasileiros. Caldeira conclui que as atitudes em relação à criminalidade, à justiça e aos direitos humanos foram moldadas por um crescente sentimento de impotência e desencanto na sociedade brasileira, e o debate sobre como lidar com a questão reflete um amplo mal-estar. 119 Doc. das Nações Unidas A/HRC/8/3/Add.4, 14 de maio de 2008, par. 39. 120 Macaualy, 2003, p.93. 121 Ibid., p.92. 122 Norman Gall, Lula e Mefistófeles, Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, sem data. 38 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 2.65 O debate sobre o crime promove uma reorganização simbólica de um mundo perturbado tanto pelo aumento da criminalidade quanto por uma série de processos que têm afetado profundamente a sociedade brasileira nas últimas décadas. Esses processos incluem a democratização política, a alta inflação persistente, a recessão econômica, o esgotamento de um modelo de desenvolvimento baseado no nacionalismo, a substituição de importações, o protecionismo, e o desenvolvimento econômico patrocinado pelo Estado. O crime oferece o imaginário com o qual pode-se expressar sentimentos de perda e decadência social gerados por esses outros processos, e legitimar a reação adotada por muitos cidadãos: segurança privada para garantir o isolamento, a reclusão e o distanciamento daqueles considerados perigosos.123 123 Teresa Caldeira, Cidade de muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo, University of Califórnia Press, 2000, p.2. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 39 40 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 CaPÍTULo TRÊS ESTRUTURa inSTiTUCionaL, PoLÍTiCa E ConSTiTUCionaL do BRaSiL Estrutura Constitucional e Política 3.1 O Brasil é uma república federativa constitucional com uma população de aproximadamente 190 milhões de habitantes. Ele é composto por um Distrito Federal (Brasília) e 26 estados. Estes são subdivididos em aproximadamente 5.500 municípios, que são unidades político- administrativas autônomas governadas por prefeitos e vereadores. Os estados têm suas próprias constituições e são autônomos dentro da estrutura da Constituição Federal. O Judiciário também é formado por tribunais estaduais e federais. A Constituição Federal define o conjunto de poderes administrativos e legislativos para o governo federal, bem como para os estados e municípios. Ela também lista o que é de competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. 3.2 O Congresso é composto por duas casas (o Senado e a Câmara dos Deputados) e tem autoridade sobre assuntos sob a jurisdição da União – principalmente política fiscal e organização política e administrativa. Os estados têm suas próprias assembléias legislativas eleitas. Esta estrutura constitucional básica existe desde que o Brasil obteve sua independência de Portugal em 1822, embora o direito de voto para o Congresso e a capacidade deste de exigir prestação de contas do Executivo tenham variado durante os diferentes períodos da história brasileira.124 Durante a ditadura de 1964 a 1985, continuaram a ser realizadas eleições para o Congresso e para as assembléias estaduais, embora estas instâncias tenham sido reduzidas a impotentes câmaras de debates. Em 1982 foram realizadas eleições diretas para governadores estaduais e, em 1985, um presidente civil foi eleito indiretamente. Uma Assembléia Nacional Constituinte redigiu uma nova Constituição a partir de 1987 e esta foi adotada no ano seguinte, proporcionando uma estrutura adequada para a atual governança do Brasil. A transição da ditadura para a democracia é freqüentemente referida como abertura, e embora ela tenha sido acompanhada por pressões populares vindas de baixo, a evolução gradativa do processo teve impacto na forma pela qual a sociedade brasileira desenvolveu-se a partir de então. 3.3 A Constituição atual foi promulgada em outubro de 1988. As primeiras eleições diretas para a Presidência foram realizadas no ano seguinte. As eleições tanto para o Congresso Nacional quanto para os governos dos estados federados e assembléias legislativas estaduais são realizadas na mesma ocasião das eleições presidenciais. O Presidente da República é o chefe de estado e chefe de governo. O Presidente pode propor legislação e também vetá-la, tanto parcial quanto totalmente. O veto pode ser derrubado pelas duas casas do Congresso atuando conjuntamente, embora o processo seja difícil. O Presidente também pode legislar através do orçamento anual 124 A primeira constituição, outorgada pelo imperador Dom Pedro I determinou eleições indiretas e criou os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário; contudo, ela também acrescentou um quarto poder, o “Poder Moderador”, a ser exercido pelo imperador. Desde então, formulações similares surgiram por intermédio de alguns de seus sucessores. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 41 e de leis e decretos provisórios, chamados de Medidas Provisórias, renováveis a cada 30 dias. Os presidentes também têm poderes consideráveis de fisiologismo, devido ao grande número de nomeações políticas que podem fazer. 3.4 Embora os presidentes brasileiros gozem de considerável poder, eles precisam ser capazes de reunir maiorias de apoio em ambas as casas, para poder governar mais efetivamente. Fernando Collor, o primeiro Presidente do Brasil eleito diretamente após a ditadura, foi impedido por corrupção pelo Congresso em 1992, dois anos após haver tomado posse. Os esforços de reforma dos seus sucessores têm sido atrasados com freqüência pela necessidade de aplacar os vários grupos de interesses representados no Congresso. Por exemplo, grupos multipartidários como a bancada ruralista, a bancada evangélica, ou grupos representando estados ou regiões específicos são com freqüência mais bem organizados que os próprios partidos políticos. 3.5 A Constituição prescrevia inicialmente que os presidentes podiam exercer apenas um período no cargo, mas isso foi alterado sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso, o segundo Presidente do Brasil eleito diretamente, para permitir que ele concorresse a um segundo mandato, em 1998. Em 2002, os eleitores elegeram Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, como Presidente. Ele foi reeleito em 2006, e seu mandato atual vai até 2011, quando ele deixará o cargo. Serão realizadas eleições para o seu sucessor em outubro de 2010. 3.6 A Câmara dos Deputados é eleita através de um sistema de representação proporcional (RP) de lista aberta, enquanto os senadores são eleitos através de um sistema de maioria relativa. É previsto segundo turno nas eleições presidenciais, dos governadores e dos prefeitos caso a maioria absoluta não seja atingida no primeiro turno. A composição de ambas as casas é distorcida pela alocação regional de vagas, que penaliza pesadamente a representação do Sul e Sudeste do país, economicamente mais desenvolvidos, em favor das regiões Norte e Nordeste com menor ocupação populacional. Um observador descreveu o Senado brasileiro como “uma das Câmaras altas com representação das mais desproporcionais dentre as democracias federativas, sendo que o estado mais populoso, São Paulo, tem 144 vezes mais habitantes por Senador do que o estado de menor contingente populacional.”125 3.7 A super-representação do Norte e Nordeste em ambas as casas do Congresso é frequentemente justificada pela necessidade de assegurar o equilíbrio regional, mas também é, em parte, um legado da era ditatorial. Estas duas regiões também têm sido tradicionalmente o bastião mais forte da política clientelista praticada pelas elites fundiárias. Os “coronéis” distribuiriam favores em troca da lealdade dos seus eleitores e alguns governariam nações virtuais completas com os seus próprios exércitos particulares. Durante as eleições os “coronéis” controlavam os eleitores em troca de influência e usavam esse poder de barganha para obter concessões em nível nacional, o que, por sua vez, reforçava os seus poderes locais oligárquicos. A República Velha, que durou de 1889 a 1930, é frequentemente referida como a “República dos Coronéis”, em referência à influência deles. Embora o Brasil fosse formalmente uma democracia, a participação popular nas eleições era minúscula e o fisiologismo entrincheirou-se como meio de compra de votos. Como Norman Gall observou, o número total de cargos federais, estaduais e municipais em 1920 era em torno de 200.000, o que igualava ao número de votos necessários para vencer a eleição presidencial de 1919.126 125 Alfredo Montero, Política Brasileira, Editora Polity, 2005, p.61. 126 Norman Gall, Lula e Mefistófeles, Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, sem data. 42 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 3.8 A República Velha foi derrubada por Getúlio Vargas em 1930, por aquilo que é descrito, frequentemente, como uma revolução ou um golpe militar. Vargas foi um ditador populista cujo Estado Novo assemelhava-se a um híbrido entre a Itália de Mussolini e o Portugal de Salazar. Os poderosos tribunais trabalhistas do Brasil datam daquele período. Vargas perdeu o poder em 1945, mas foi reeleito em 1951. Ele foi sucedido pelo carismático Juscelino Kubitscheck que cumpriu todo o seu mandato no cargo, e, em seguida, pelas efêmeras presidências de Jânio Quadros e João Goulart, o último dos quais foi derrubado por um golpe militar. Ao invés de abolir o Congresso, a ditadura militar tentou governar através dele, manipulando tanto o sistema eleitoral quanto a organização dos partidos políticos, em uma tentativa de passar um “verniz democrático” no seu governo. São Paulo e a região Sul sempre foram tradicionalmente considerados como centros de “opinião democrática e progressista”, e assim, os generais diminuíram sua influência, ao mesmo tempo em que fortaleceram o peso do Norte e do Nordeste, cujos representantes eleitos tendiam a ser mais simpáticos aos militares.127 Os autores da Constituição de 1988 não reduziram este desequilíbrio regional, e uma revisão da Constituição, cinco anos mais tarde, também deixou de tratar desta anomalia. a redação da Constituição de 1988 3.9 A Constituição de 1988 foi redigida enquanto o governo federal estava fraco, tanto em relação ao Congresso quanto em relação aos governadores e prefeitos eleitos diretamente. Ele também enfrentava pressões de uma grande variedade de estratos sociais, cujas mobilizações extra parlamentares haviam ajudado a derrubar a ditadura. A primeira redação da Constituição foi produzida por uma “comissão de notáveis”, mas foi abandonada pela Assembléia Constituinte, que optou por desenvolver uma nova redação, a partir da estaca zero. Mais de 20.000 pessoas participaram das sessões públicas da Assembléia, sendo intensa a participação de movimentos sociais, organizações da sociedade civil e grupos de interessados. O Presidente Cardoso comparou o processo de redação ao período em que ele lecionava na Universidade de Paris, durante a agitação estudantil de 1968,128 enquanto Fiona Macaulay, uma ex-pesquisadora da Anistia Internacional no Brasil, descreveu o desfecho como “caótico”.129 3.10 Ao contrário, Oscar Vilhena Vieira alega que este período deve ser considerado como “o momento mais democrático da vida política brasileira”.130 Contudo, ele também observa que na “sua linguagem e escopo, ela [a Constituição] segue a tradição do estado social forte forjado durante a era Vargas (1930-1945)”, que reuniu algumas das piores tradições do corporativismo latino-americano. O Brasil estava comparativamente isolado das instâncias mais amplas que influenciaram as discussões sobre a proteção constitucional de direitos na Europa Oriental e na África do Sul pós-Apartheid, alguns anos mais tarde. Ao invés disso, o país buscou inspiração na radical constituição portuguesa de 1976, incluindo uma seção detalhada sobre política econômica, cujas disposições socialistas foram, em grande medida, abandonadas em anos subsequentes. 127 Reid, 2007, p.187. 128 Fernando Henrique Cardoso, O Presidente do Brasil Por Acaso - Memória, Temas públicos, 2006, p.166. 129 Fiona Macaulay, “A Democratização e o Judiciário”, em Maria DiAlva Kinzo e James Dunkerley, O Brasil desde 1985: economia, política e sociedade, Instituto de Estudos Latino-Americanos, 2003, p.86. 130 Oscar Vilhena Vieira, “Direito de Interesse Público. Uma Perspectiva Brasileira”, UCLA Journal of International Law & Foreign Affairs. 224, 2008, pp.231-237. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 43 3.11 Mais de 300 propostas para inclusão na Constituição foram apresentadas por meio de organizações não-governamentais (ONGs) e defensores da sociedade civil. Estes incluíam sindicalistas, ativistas de direitos fundiários e grupos que defendiam os direitos dos povos indígenas, dos afro-brasileiros, das mulheres, da população urbana pobre e outros tradicionalmente marginalizados na sociedade brasileira. Estes esforços asseguraram a inclusão do que Vilhena descreve como “uma carta de direitos extremamente generosa e abrangente”, incluindo os direitos dos grupos mais vulneráveis, como os povos indígenas, os idosos e as crianças. A Constituição também reconheceu um grupo novo de direitos ambientais e do consumidor. 3.12 Embora a recente jurisprudência internacional de direitos humanos tenda a considerar a observância à maioria dos direitos sociais, econômicos e culturais como progressiva e incremental, a Constituição de 1988 do Brasil declarou que todos os direitos fundamentais deveriam ter aplicação imediata.131 Ela também estabeleceu que a lei não pode eximir de exame jurídico nenhuma ameaça ou violação de direito fundamental, o que ampliou significativamente o papel do judiciário na elaboração de políticas públicas.132 Direitos fundamentais não podem ser abolidos, nem mesmo por emendas constitucionais, o que os torna valores fundamentais da Constituição, isto é, a reserva de justiça do sistema jurídico brasileiro. As pessoas podem alegar violação de direitos fundamentais por ação ou omissão dos poderes Legislativo ou Executivo na implementação ou regulamentação de tais direitos. Uma consequência disto é que questionamentos constitucionais relativos a ações ou omissões do governo em questões bastante triviais são frequentemente levadas aos tribunais federais. Muitas destas disposições exigiram legislação adicional, e a adoção da Constituição exigiu a promulgação de 285 leis ordinárias e 41 leis complementares para colocar as suas disposições em vigor.133 Isto atravancou o processo legislativo no Brasil, e algumas das disposições legislativas previstas pela Constituição ainda não foram promulgadas. A Constituição também estabeleceu que as percentagens vinculadas ao valor dos impostos cobrados por todas as esferas da federação tem que ser gastos em saúde e educação. Contudo, o Brasil gasta agora somente cerca de 3% (três por cento) de seu PIB em saúde e menos de 5% (cinco por cento) em educação, em comparação com 12% (doze por cento) em pensões, o que é um número extraordinário para um país relativamente jovem. Os 20% (vinte por cento) dos pensionistas mais ricos do Brasil recebem 61% (sessenta e um por cento) desta despesas, aproximadamente 40% (quarenta por cento) vai para apenas três milhões de exfuncionários públicos e 40% (quarenta por cento) são gastos com pessoas de 40 a 60 anos de idade.134 Em contraste, as pessoas que trabalham na economia informal – aproximadamente 40% (quarenta por cento) da força de trabalho – não recebem qualquer benefício estatal. Grande parte da tributação do Brasil é indireta, e assim, o ônus atinge proporcionalmente com mais dureza os mais pobres, enquanto os privilégios beneficiam desproporcionalmente os ricos. Na prática, o discurso de direitos tem sido usado para resguardar os benefícios corporativistas da elite brasileira e aumentar a desigualdade do país. 131 A Constituição Federal, Artigo 5, Parágrafo 1. 132 Ibid., Artigo 5, XXXV. 133 Macaulay, 2003, p.87. 134 Gall, sem data, Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial. 44 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 Após o período de governo autoritário centralizado, os criadores da Constituição descentralizaram o poder, concedendo considerável autonomia aos governadores estaduais para tributar e gastar, sem consulta ao governo federal. A abertura começou com as eleições diretas dos governadores em 1982 e estes usaram a sua legitimidade democrática então alcançada para reivindicar “direitos fiscais” para os estados. Muitos destes governadores haviam sido anteriormente nomeados para os seus cargos pela ditadura, e o controle das receitas fiscais deu a eles consideráveis recursos para fisiologismo e clientelismo, com os quais eles conseguiram consolidar as suas bases de apoio. Isto também tornou extremamente difícil para o governo federal controlar os gastos públicos. Os estados e municípios acumularam grandes dívidas, e até mesmo imprimiram dinheiro usando os seus próprios bancos estaduais, o que exacerbou o tumulto na elaboração de políticas econômicas durante os anos oitenta e o início dos noventa. O governo federal somente recobrou o controle das finanças públicas de forma gradual, impondo ajustes e reformas estruturais a estados falidos e o controle rigoroso do suprimento de dinheiro pelo Banco Central do Brasil. 3.17 A Constituição também concedeu aos políticos do Brasil uma autonomia considerável, protegendo-os contra as restrições da disciplina partidária, o que, na prática, aumentou a fragmentação política do Congresso brasileiro. Nenhum partido político atingiu maioria em qualquer das casas legislativas desde que o Brasil retornou à democracia. Os governos tendem a se basear em coalizões bastante instáveis, cujos líderes não conseguem ter certeza nem mesmo de como os seus próprios partidos votarão. Nos primeiros dois anos da presidência de Lula, por exemplo, cerca de um terço dos membros do Congresso trocaram de partido, vários deles, duas ou três vezes. 3.18 A fraqueza da disciplina partidária aumenta a influência de blocos multipartidários e agrupamentos regionais, e torna o processo legislativo particularmente árduo. Acordos secretos e política clientelista são os padrões de fazer negócios, e os escândalos de corrupção – especialmente a prática de compra de votos – tornaram-se rotina sob sucessivas administrações.135 As restrições que a Constituição impõe ao Executivo também dificultam a implementação de reformas que desafiem interesses ocultos, especialmente os da elite corporativista brasileira. Como observa Montero, “O governo oligárquico em todas as suas formas continua no Brasil nos dias de hoje, devido ao uso universal de clientelismo, fisiologismo e patrimonialismo. . . O uso político de recursos públicos é a força vital da prática legislativa, do lobby baseado em interesses, da organização dos partidos políticos e do processo de construção de carreiras políticas. . . . O aspecto mais duradouro das instituições políticas brasileiras contemporâneas é a capacidade de interesses minoritários bloquearem mudanças institucionais”.136 o Judiciário Brasileiro 3.19 Como um dos três Poderes de governo na Constituição, o Judiciário tem um papel vital na manutenção das liberdades civis do povo brasileiro, permitindo que o Executivo possa ser fiscalizado. O Supremo Tribunal Federal (STF) é a mais alta autoridade judicial do Brasil, 135 Gall tem uma boa análise do escândalo do mensalão de 2005. 136 Montero, 2005, p.51. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 45 encarregado de interpretar a Constituição. O Tribunal tem o poder de revisão judicial e julga a constitucionalidade das leis. Ele também trata de processos contra altas autoridades, como o Presidente ou membros do Congresso, e resolve disputas entre o governo federal e os estados. O STF compreende 11 juízes nomeados pelo Presidente da República e ratificados pelo Senado. 3.20 Imediatamente abaixo do STF está o Superior Tribunal de Justiça (STJ), que consiste em 33 juízes nomeados pelo Presidente da República a partir de uma lista elaborada pelo próprio Judiciário, juntamente com o Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O STJ é o mais alto tribunal de recursos para questões não-constitucionais, e foi criado em uma tentativa, largamente mal sucedida, de reduzir o número de processos dirigidos ao STF. Um Recurso Especial pode ser apresentado ao STJ quando um acórdão de um tribunal de segunda instância ofende uma disposição legal federal ou quando tribunais de segunda instância emitem acórdãos diferentes sobre a mesma disposição legal federal. 3.21 A Constituição de 1988 contém 43 artigos diferentes sobre o papel do Judiciário do Brasil e sobre a estrutura e os poderes dos tribunais e dos ministérios públicos. Após a experiência da ditadura militar, os redatores da Constituição Federal estavam preocupados em proteger a independência do Judiciário e a capacidade dos tribunais de responsabilizar o governo através de exame judicial. Contudo, a fraqueza do Executivo na ocasião da redação da Constituição permitiu que os juízes maximizassem sua influência e minimizassem sua responsabilidade, no que Macaulay descreve como um “caso clássico de um tiro saindo pela culatra”. Ela observa que o Judiciário brasileiro desfruta atualmente de mais independência política e operacional do que em qualquer país da América Latina, mas a “hiper-autonomia” e o “isolamento” resultantes criaram mais problemas do que resolveram.137 3.22 Há um total de 15.731 juízes no Brasil, 11.108 dos quais atuam na esfera estadual.138 O Brasil tem cinco sistemas judiciais paralelos, cada um dos quais com juízes de primeira instância, tribunais de recursos estaduais ou regionais e tribunais superiores. São eles: os juízes cíveis e criminais organizados na esfera estadual; os juízes federais, que tratam de questões de relevância federal ou constitucional; e os sistemas de justiça especializados, que consistem nos tribunais eleitorais, tribunais do trabalho e tribunais militares. Cada um dos estados do Brasil organiza os seus próprios sistemas judiciais, embora eles devam cumprir as mesmas leis e os princípios constitucionais básicos. O sistema jurídico brasileiro baseia-se fortemente em garantias constitucionais, o que significa que um grande número de processos chegam até o STF através de recursos. Embora questionamentos diretos à constitucionalidade das leis somente possam ser feitos no STF, qualquer juiz pode decidir sobre a constitucionalidade de uma lei como questão incidental em qualquer tipo de processo judicial sob consideração, e isto pode então chegar ao STF através de recursos. 3.23 Cada juiz de primeira instância é livre para interpretar a lei, independentemente de decisões anteriores de tribunais superiores. Tribunais de segunda instância frequentemente derrubam ou paralisam decisões legislativas, e são livres para estabelecer novos precedentes em questões cíveis e penais, e também em questões constitucionais. A difusão do poder de revisão judicial, 137 Macaulay, 2003, p.86. 138 Conselho Nacional de Justiça, Departamento de Pesquisas Judiciárias, A Justiça em Números 2008, Variáveis e Indicadores do Poder Judiciário, CNJ, junho de 2009, p.209. Há mais 1.478 juízes federais e 3.145 juízes trabalhistas. 46 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 combinada com a estrutura complexa e sobreposta do Judiciário brasileiro, tem tornado difícil a elaboração de leis e políticas pelo governo federal, já que o Executivo tem de se defender contra múltiplos níveis de questionamentos judiciais cada vez que promulga uma nova lei. Isto aumentou de forma maciça o número de processos com os quais o Judiciário lida, e, frequentemente, produz decisões conflitantes e ambíguas. Entre 1988 e 1991, o número de processos que ingressavam na Justiça Federal disparou de 193.709 para 725.993.139 Isto, em parte, foi uma reação a uma medida provisória “anti-inflação” decretada pelo Presidente Collor, congelando todas as contas bancárias pessoais em 1990, o que significou que muitas pessoas perderam todas as suas economias. Dezenas de milhares contestaram a medida nos tribunais, e o governo respondeu recorrendo em cada processo até o STF, que ficou completamente paralisado como resultado. O sistema judicial como um todo também não conseguiu lidar com o enorme aumento da sua carga de trabalho, e ocorreu um gigantesco acúmulo de processos. O governo Collor tentou restringir o poder de revisão judicial ao STF, que havia indicado que não decidiria contra o governo naquela medida, e impor o efeito vinculante das decisões do Supremo Tribunal aos tribunais inferiores. Houve resistência tanto pelos níveis inferiores do Judiciário como por muitos da esquerda, que argumentaram que os juízes de primeira instância do Brasil estão muito mais próximos do povo e, assim, estão mais em contato com as suas preocupações do dia-a-dia. Alguns dos membros superiores do Judiciário são vistos como envolvidos no nepotismo e na camaradagem que caracterizaram a era ditatorial, e uma vez que os membros do STF são todos frutos de nomeações políticas, argumentou-se que esta medida atentaria contra a independência constitucional do Judiciário. 3.26 Embora a vasta maioria dos questionamentos das iniciativas legislativas presidenciais ou do Congresso Nacional sejam mal sucedidas, cada uma deve, contudo, ser tratada pelos tribunais superiores, o que sobrecarrega o sistema. Por exemplo, em 2005, o STF analisou cerca de 5.000 processos por semana, muitos dos quais eram liminares idênticas àquelas que haviam sido ajuizadas em dezenas de tribunais estaduais simultaneamente.140 Como Macaulay observa, o STF lida com isso aplicando automaticamente decisões predeterminadas, fazendo chacota da idéia de que cada processo é examinado em seu próprio mérito. Muitos juízes também tendem a seguir informalmente as decisões de tribunais superiores, já que eles sabem que de outra forma as suas decisões serão reformuladas através de recursos. Ela conclui que “Este tipo de acesso para todos tornou-se o tipo errado de acesso e, portanto, resulta em acesso para ninguém”.141 3.27 Graças às reformas descritas abaixo, o número de processos começou a cair, embora, em maio de 2009, o Economist ainda descrevesse o STF como “o tribunal mais sobrecarregado do mundo”.142 O mesmo poderia ser dito sobre o Judiciário como um todo. Um relatório encomendado pelo Ministério da Justiça brasileiro mostrou que, em 2003, havia 17,3 milhões de ações propostas e distribuídas para juízes - o equivalente a uma ação para cada 10 habitantes.143 Os tribunais conseguiram decidir somente 12,5 milhões delas, criando um 139 Ibid., p.88. 140 Montero, 2005, p.40. 141 Macaulay, 2003, p.91. 142 Economist, “quando menos é mais”, 21 de maio de 2009. 143 Ministério da Justiça, “Diagnóstico do poder judiciário”, Brasília, 2004, p. 34. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 47 acúmulo de 4,7 milhões de processos não resolvidos, apenas naquele ano.144 Isto tem conduzido a um imenso acúmulo de processos pendentes, e significa que os julgamentos frequentemente estão sujeitos a atrasos consideráveis. 3.28 Uma pesquisa de opinião encomendada pela Ordem dos Advogados do Brasil, em maio de 2003, indicou que o Judiciário é a segunda instituição governamental menos respeitada no Brasil. Aproximadamente 38 por cento das pessoas consultadas não confiavam no sistema judicial.145 Um estudo realizado pela Associação dos Magistrados Brasileiros constatou que a maioria das pessoas viam o Judiciário como “uma caixa preta misteriosa impenetrável para o indivíduo comum, cheia de segredos que somente seres especiais [juízes] podem decifrar”.146 Em uma pesquisa de opinião realizada em fevereiro de 2009, outro instituto de pesquisa constatou que 69 por cento dos consultados acreditavam que faltava imparcialidade aos juízes no Brasil.147 Um relatório da Comissão Internacional de Juristas de 2005 foi semelhantemente condenatório: O Judiciário é lento e frequentemente corrupto, e a fraqueza dos seus mecanismos disciplinares inibe a sua eficácia. O fracasso, ao longo de décadas, em introduzir qualquer tipo de reforma judicial conduziu a acúmulos crescentes e a atrasos de julgamentos. O congestionamento burocrático dos tribunais é um grande obstáculo. Além disso, há escassez de juízes – 7,62 para cada 100.000 habitantes em maio de 2005 – e a população sente que a maioria dos 16.900 juízes do país (em julho de 2003) está fora de alcance e de responsabilização perante os cidadãos que eles servem.148 3.29 O Relator Especial das Nações Unidas sobre a Independência de Juízes e Advogados, Leandro Despouy, visitou o Brasil em outubro de 2004. 149 Seu relatório identificou as principais falhas do sistema judicial brasileiro como sendo: problemas com acesso à justiça, sua lentidão e seus notórios atrasos, e o fato de que há muito poucas mulheres, afro-descendentes, ou pessoas de origem indígena nos cargos de chefia do Judiciário. Ele concluiu que “de todas estas falhas, a mais grave é sem dúvida a primeira, já que uma grande proporção da população brasileira, por razões de natureza social, econômica ou cultural, ou de exclusão social encontra o seu acesso a serviços judiciais bloqueado, ou é discriminada na prestação de tais serviços. . . . . Atrasos na administração da justiça são outro grande problema, que na prática afeta o direito a serviços judiciais ou os torna ineficazes. Julgamentos podem demorar anos, o que conduz à incerteza tanto em questões cíveis quanto criminais e, frequentemente, à impunidade. . . A justiça brasileira não tem uma imagem positiva na sociedade em geral, embora tenha uma longa tradição de autonomia funcional como parte do governo”.150 3.30 A reforma do Judiciário tem sido um tema controverso no Brasil nas duas últimas décadas, com os críticos alegando que as tentativas do governo de aumentar o seu controle sobre o Judiciário 144 Ibid. 145 Ver “Presidente do Supremo apresenta os indicadores estatísticos do Poder Judiciário e sugere mudança naatuação da Justiça”, 12 de maio de 2005, http:// www.infojus.gov.br/portal/noticiaver.asp?lgNoticia=16852; Centro Cyrus R. Vance de Iniciativas de Justiça Internacional, Cúpula de Estratégia para as Américas, Nova York, 3–5 de março de 2005 – Relatório Nacional do Brasil. 146 AMB, Pesquisa qualitativa “Imagem do Poder Judiciário”, Brasília, 2004, p. 61. 147 Economist, “quando menos é mais”, 21 de maio de 2009. 148 Comissão Internacional de Juristas, Brasil – Ataques à Justiça 2005, ICJ, 2005. Este valor para o número total de juízes não é coerente com as estatísticas mais recentes do governo brasileiro. 149 Direitos civis e políticos, incluindo as questões de independência do Judiciário, administração da justiça, impunidade; Relatório do Relator Especial sobre a independência de juízes e advogados, Sr. Leandro Despouy, Missão ao Brasil, E/CN.4/2005/60/Add.3, 22 de fevereiro de 2005. 150 Ibid., resumo de conclusões. 48 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 enfraquecem uma salvaguarda constitucional fundamental, e que há melhores caminhos para tornar a justiça brasileira mais justa, rápida e acessível. Contudo, é geralmente consensual que o Brasil sofre de uma crônica falta de juízes no nível local, e não pode lidar com a sua carga de trabalho atual sem maiores recursos. 3.31 O Presidente Lula indicou que a reforma do Judiciário era uma das suas prioridades, quando assumiu o cargo pela primeira vez. Em maio de 2003, o governo constituiu a Secretaria de Reforma do Judiciário no Ministério da Justiça, encarregada de “formular, fomentar, supervisionar e coordenar o processo de reforma da administração da justiça, e fomentar o diálogo entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário”. Em 07 de julho de 2004, o Senado aprovou um projeto de lei que incluía a Emenda Constitucional 45: Reforma do Poder Judiciário. 151 Esta Emenda estabeleceu o princípio de que algumas decisões do STF podem ter efeito vinculante, se isto estiver expressamente escrito no acórdão, e for apoiado por uma votação de dois terços dos seus membros.152 Este processo é conhecido como súmula vinculante. 3.32 Em 2006 foi aprovada uma nova Lei, a súmula impeditiva de recursos, que especifica que, se uma decisão de um tribunal de instância inferior estiver de acordo com uma decisão anterior de um tribunal superior, não serão permitidos recursos.153 Ainda outra Lei, a Repercussão Geral do Recurso Extraordinário, especificava que somente serão permitidos recursos extraordinários ao STF se a pessoa ou entidade interpondo o recurso conseguir demonstrar que o caso tem .repercussão geral na sociedade..154 Se este requisito não for preenchido, então a sentença de um tribunal inferior será aceita como final. O impacto geral destas mudanças foi reduzir o número de processos encaminhados ao STF, que caiu de 97.400 entre abril de 2007 e março de 2008 para 56.500 entre abril de 2008 e março de 2009. 155 3.33 A Emenda Constitucional 45 também constituiu um Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para tratar de reclamações contra juízes.156 Ele consiste em 15 membros nomeados pelo Presidente da República e ratificados pelo Senado, dos quais nove serão juízes selecionados dentre todas as instâncias estaduais e federais; os seis membros restantes serão compostos de representantes do Ministério Público, da OAB e da sociedade civil. A legalidade do CNJ foi questionada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), em dezembro de 2004, que alegou que ele era uma ameaça inconstitucional à independência do Judiciário, mas o questionamento não teve êxito. Promotores públicos 3.34 O Ministério Público é o órgão encarregado constitucionalmente de promover a justiça no Brasil, o que envolve tanto o cumprimento da lei quanto a proteção dos direitos das pessoas ao amparo da lei. Os poderes e as funções institucionais do Ministério Público estão estabelecidos na Constituição, e isto também protege a sua independência, na mesma linha das salvaguardas e dos privilégios concedidos ao Judiciário.157 A Emenda Constitucional 45 também criou um 151 http://www.v-brazil.com/government/laws/recent-amendments.html. 152 Constituição Federal, Artigo 103A. 153 Lei 11.276. 154 Lei 11.418/2006. 155 Economist, “quando menos é mais”, 21 de maio de 2009. 156 Constituição Federal, Artigo 103B. 157 Constituição Federal, Artigos 127-129. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 49 órgão de supervisão externa para o Ministério Público – o Conselho Nacional do Ministério Público. A constituição deste órgão supervisor foi amplamente bem acolhida e não enfrentou o tipo de questionamento jurídico ou político que o Judiciário encenou contra a constituição do CNJ. 3.35 A estrutura do Ministério Público também segue a do Judiciário. Há Ministérios Públicos em cada um dos 26 estados e no Distrito Federal, empregando cerca de 12.000 promotores, nos níveis federal e estadual (o que significa que há em torno de 4,22 promotores públicos para atender cada 100.000 brasileiros).158 Os promotores de justiça atuam como promotores em juízos de primeira instância, enquanto que os procuradores de justiça tratam de recursos. O Procurador Geral da República chefia o órgão federal e trata de processos perante o STF. Há também o Colégio Superior do Ministério Público, um Conselho Nacional do Ministério Público e um órgão de controle (a Corregedoria-Geral do Ministério Público). Os promotores militares atuam em tribunais militares (incluindo em processos envolvendo a polícia militar). 3.36 As origens do Ministério Público remontam à época colonial, quando os promotores públicos tinham a responsabilidade de aplicar e monitorar o cumprimento da lei em nome da coroa portuguesa. Este papel foi gradativamente ampliado, à medida que eles receberam poderes para proteger os direitos de grupos vulneráveis da sociedade brasileira, incluindo escravos libertados, indígenas brasileiros, órfãos e os “mentalmente incapacitados”. O Ministério Público também foi encarregado de monitorar as prisões e instituições de saúde mental e da proteção dos interesses dos menores durante o período imperial. Ele recebeu uma função mais geral de monitoramento do interesse público através de várias leis promulgadas durante a República Velha. Em 1939, o Código de Processo Civil especificou seu papel como sendo o de monitorar a implementação da lei de acordo com o interesse do público.159 Isto deu ao Ministério Público a responsabilidade de intervir em qualquer processo no qual houvesse um aspecto de interesse público, e ele assumiu muitas das funções de um ouvidor (ombudsman) na sociedade brasileira, inclusive a proteção do meio ambiente, do patrimônio cultural e histórico e do patrimônio público.160 3.37 A Constituição de 1988 fortaleceu e ampliou consideravelmente o papel e a condição do Ministério Público como garantidores dos direitos do cidadão. Como Oscar Vilhena observou, ele atingiu a condição de quase um quarto poder no Estado brasileiro. A Constituição reconhece o Ministério Público como “uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.161 Todos os seus membros são servidores públicos vitalícios, selecionados através de concurso público, com as mesmas garantias de independência dos membros do Judiciário. O Presidente da República nomeia o Procurador Geral da República dentre os membros do Ministério Público - o que está sujeito à ratificação do Senado - para um mandato de dois anos, e os governadores estaduais adotam procedimento similar. O Ministério Público estabelece o seu próprio orçamento, que é encaminhado diretamente ao Congresso para análise, basicamente da mesma forma que o Executivo e o Judiciário fazem. 158 Defensoria Pública, Diagnóstico II, Ministério da Justiça, 2006, p.106. 159 Decreto-Lei Nº 1.608, de 18 de setembro de 1939. 160 Vilhena 2008, p.238. 161 Artigo 127. 50 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 3.38 Como o Judiciário brasileiro, os membros do Ministério Público desfrutam de remuneração e condições excepcionalmente boas segundo os padrões brasileiros. Muitos dos seus membros envolveram-se em litígios de interesse público nos campos dos direitos ambiental, do consumidor e das crianças, assim como patrocinaram as causas de comunidades indígenas e afro-descendentes, questionando a discriminação e tratando de questões como a violência contra as mulheres. O Ministério Público também tem ação emblemática como órgão encarregado de combater a corrupção e o crime organizado. 3.39 Em seu relatório preliminar sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, o Relator Especial das Nações Unidas, Philip Alston, disse que “estava especialmente impressionado com o profissionalismo e a dedicação do Ministério Público.”162 Ele concluiu que “o Ministério Público é um órgão dedicado e profissional. Ele tem de desempenhar um papel chave desde o início da investigação de cada incidente envolvendo morte pela polícia”.163 Contudo, como observa Oscar Vilhena, o Ministério Público pode estar se transformando em vítima “da tendência burocrática de grandes instituições de se tornarem autocentradas”. Apesar do fato de que os seus membros têm a obrigação legal de manter as portas abertas para o público, não há nenhum mecanismo através do qual as organizações da sociedade civil possam responsabilizá-los. De fato, Vilhena sustenta que o entusiasmos inicial quanto ao seu potencial pode explicar a falha da maioria das organizações da sociedade civil brasileira em desenvolver as suas próprias estratégias de defesa legal.164 3.40 O litígio em prol do interesse público pelo Ministério Público está, em grande medida, dirigido aos direitos do consumidor e às questões ambientais, que são de interesse principalmente para os brasileiros de classe média. Contudo, a maioria esmagadora do trabalho dos promotores públicos no Brasil, na esfera estadual, continua sendo nos processos penais e civis comuns. Os promotores têm a responsabilidade geral de supervisionar a condução de investigações criminais pela política e de oferecer a denúncia ou promover a ação penal, quando um processo já está em trâmite perante uma autoridade judicial. É responsabilidade deles decidirem apresentar ou não acusações (oferecer a denúncia) contra alguém, e eles têm o dever de ofício de requerer a absolvição de um réu se estiverem convencidos de sua inocência. 3.41 Os promotores públicos estão legalmente obrigados a assegurar que todas as provas colhidas no curso de uma investigação criminal tenham sido obtidas apropriadamente, monitorar a ocorrência de irregularidades e imperícia e assegurar que os direitos do suspeito de um crime não sejam violados durante o processo. Se os promotores públicos permanecerem em posse de provas contra suspeitos que eles saibam, ou acreditem com bases razoáveis, que foram obtidas mediante o uso de métodos ilegais, eles devem rejeitá-las, informar o juiz e tomar todas as medidas necessárias para garantir que os responsáveis sejam levados à justiça.165 Qualquer prova obtida por meio do uso de tortura ou de qualquer tratamento semelhante somente pode ser usada como prova contra os perpetradores de tais abusos.166 Na prática, isso raramente acontece. 162 Relatório do Relator Especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, Adendo de Philip Alston, Missão ao Brasil, 4-14 de novembro de 2007, Doc. das Nações Unidas A/HRC/8/3/Add.4, 14 de maio de 2008, par. 19. 163 Ibid., par. 21 (f). 164 Vilhena, 2008, pp.240-241. 165 Diretrizes das Nações Unidas sobre o Papel dos Promotores Públicos, Diretriz 16. 166 Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes, Artigo 15. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 51 3.42 A polícia e os promotores públicos geralmente trabalham juntos para levar processos penais adiante, embora tenha havido alguns questionamentos legais relativos a sua divisão de responsabilidades e não haja ainda jurisprudência consolidada sobre este assunto. O Relator Especial das Nações Unidas Alston também observou que: Na prática, o papel investigativo dos promotores tem sido frequentemente desencorajado pela Polícia Civil e impedido por controvérsias legais sobre os poderes dos promotores. Primeiramente, a Polícia Civil demonstra pouca conscientização do valor em consultar os promotores para certificar-se de que as provas que eles estão colhendo serão suficientes para sustentar acusações criminais. Por esta razão, eles raramente informam aos promotores, até terem atingido um estágio no qual a lei exige que eles assim o façam. Isto geralmente não será antes de 30 dias após a ocorrência do crime, em cuja ocasião a cena do crime estará quase certamente destruída, os corpos provavelmente já terão sido enterrados e as testemunhas poderão ter fugido. Em segundo lugar, alguns contestaram o poder legal dos promotores para colher provas, sustentando que somente a Polícia Civil tem o direito de conduzir investigações. Embora este argumento pareça ser motivado mais por ciúmes institucionais do que por análise constitucional, os tribunais não têm proporcionado uma resposta definitiva, o que significa que os promotores que colham provas não poderão ter certeza de que elas serão admissíveis no julgamento.167 3.43 O Ministério Público claramente tem alguma culpa pela crise do sistema judicial do Brasil. Os promotores têm a responsabilidade de assegurar que não participem de interrogatórios nos quais sejam usados métodos coercitivos para extrair confissões ou informações. Eles também devem certificar-se de que tais métodos não sejam usados por agentes aplicadores da lei para obter provas para a apresentação de acusações contra um suspeito. Quando um suspeito ou uma testemunha é trazido perante um promotor, este deve assegurar que qualquer informação ou confissão oferecida esteja sendo dada livremente. Uma variedade de garantias também deve ser proporcionada a pessoas detidas com base em leis internacionais e nas melhores práticas de outras jurisdições.168 Os juízes e promotores têm a responsabilidade de proteger aqueles sob o risco de tortura, investigar alegações de tortura, inspecionar locais de detenção onde pessoas possam estar sob risco de tortura, processar suspeitos torturadores e providenciar reparação para vítimas de tortura. Como as provas apresentadas neste relatório tornam claro, atualmente eles estão falhando em cumprir suas responsabilidades a este respeito. 3.44 Os promotores públicos também tem poderes para, mensalmente, inspecionar prisões, cadeias públicas e delegacias de polícia, embora, na prática, isto não ocorra. Se surgirem provas de tratamento inadequado durante inspeções por parte de outros órgãos, é dever dos promotores públicos iniciar investigações e possíveis processos. Como mostra este relatório, tem havido muito poucos processos contra policiais e funcionários prisionais responsáveis por graves violações de direitos humanos e abuso dos seus cargos de autoridade nos sistemas penal e de justiça criminal brasileiros, e a falha do Ministério Público em investigar tais violações mais vigorosamente tem contribuído para a aparente cultura de impunidade que existe atualmente. 167 Relatório do Relator Especial sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, Sr. Philip Alston, Missão ao Brasil, A/HRC/11/2/Add.2 futuro, 28 de agosto de 2008. 168 Conor Foley, Combatendo a tortura: um manual para juízes e promotores, Centro de Direitos Humanos da Universidade de Essex, 2003. Uma versão deste manual, Combate a tortura: manual para Magistrados e membros do Ministério Público, foi distribuído pelo governo brasileiro a cada juiz e promotor público do Brasil. 52 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 defensores públicos 3.45 A Constituição de 1988 estabelece que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.169 Ela também determina a promulgação de lei para estabelecer a Defensoria Pública nos vários estados do Brasil.170 Isto foi estabelecido pela Lei Complementar nº 80 de 12 de janeiro de 1994, que estipulou as disposições gerais para a criação de defensorias públicas em cada estado. 3.46 A idéia de prestar assistência jurídica aos pobres está estabelecida há muito tempo no sistema jurídico brasileiro e houve várias tentativas de estabelecer alguma forma de representação pro bono por parte do Ministério da Justiça e da Ordem dos Advogados.171 O direito constitucional à assistência jurídica apareceu na efêmera constituição do Brasil de 1934, mas a organização de serviços públicos de assistência jurídica só começou nos anos cinquenta, quando uma lei federal definiu a estrutura e os princípios ao amparo dos quais os estados poderiam organizálo. As primeiras Defensorias Públicas foram estabelecidas no Rio de Janeiro, em 1954, seguido, consideravelmente mais tarde, por Minas Gerais e pela Bahia, em 1981 e 1985, respectivamente. A maioria dos demais estados somente criou suas Defensorias Públicas após a aprovação da lei de 1994. 3.47 A função básica da Defensoria Pública consiste em proporcionar assistência judiciária gratuita a pessoas que não possam pagar advogados particulares – definidas ao amparo da legislação brasileira como sendo aquelas que ganham até três salários mínimos. Isto cobre cerca de 70 milhões de brasileiros, então a necessidade é considerável. Há aproximadamente 4.000 defensores públicos em todo o Brasil, em comparação com 12.000 promotores públicos e quase 16.000 juízes. Isto significa que há 1,48 defensor público para cada 100.000 habitantes do Brasil, um quociente muito menor que os de juízes e promotores públicos – que são 4,22 e 7,7, respectivamente.172 Embora o mandato dos defensores públicos seja mais limitado do que o de juízes e promotores – a necessidade dos serviços deles é muito maior do que pode ser atendido com os recursos atuais. A Defensoria Pública presta assistência jurídica tanto em processos civis quanto criminais, e muitos dos seus escritórios têm unidades especializadas em lidar com direitos do consumidor e com os direitos das mulheres, das crianças e dos idosos. Isto significa que o trabalho deles está muito disperso e isto reduz os recursos que podem ser dedicados ao trabalho da justiça criminal. 3.48 O Ministério da Justiça estimou que 80 por cento dos presos não podem pagar um advogado e então precisam receber os serviços de um defensor público ou de um advogado particular às expensas do poder público.173 Ainda assim, na prática, há muito poucos defensores públicos para realizar esta tarefa com eficácia. Um advogado criminalista eficaz precisa ter acesso ao/a seu/sua cliente imediatamente após a prisão, prestar-lhe assistência durante o interrogatório e assegurar que as garantias constitucionais de seu/sua cliente não sejam violadas enquanto estiver sob custódia. Ele ou ela também precisa de tempo para examinar relatórios policiais e outras provas contra o/a seu/sua cliente, entrevistar todas as testemunhas apresentadas 169 Constituição Federal, Artigo 5, LXXIV. 170 Constituição Federal, Artigo 134, §1º. 171 Vilhena, 2008, pp. 241-243. 172 Defensoria Pública, Diagnóstico II, Ministério da Justiça, 2006, p.106. 173 Ibid. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 53 pela promotoria e buscar provas e testemunhas adicionais. Ele ou ela precisa de tempo para reunir-se com o/a acusado(a) e discutir os detalhes do delito alegado e todas as provas que provavelmente serão apresentadas. O/a advogado(a) também precisa ser capaz de preparar e apresentar petições prévias ao julgamento, bem como preparar o processo em si para o julgamento. Se o processo envolver um julgamento por júri, então o advogado de defesa precisa participar da escolha dos jurados. Além de representar o/a cliente durante o julgamento em si, os/as advogados(as) de defesa também precisam de tempo para determinar e pesquisar as bases apropriadas de recurso, apresentar argumentos por escrito em sede de recurso e acompanhar tais recursos pelo tempo que for necessário para conseguir justiça para seus/suas clientes. Estes são procedimentos demorados e potencialmente dispendiosos, mas constituem a base mínima necessária para assegurar o direito a um julgamento justo, conforme garantido pelos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. 3.49 Contudo, as Defensorias Públicas não têm nem cerca dos recursos necessários para cumprir estas funções. Os defensores públicos raramente visitam delegacias de polícia, e geralmente, só se encontram com os seus clientes – e lêem os autos dos processos dos mesmos – alguns minutos antes das audiências iniciais. Isto mal lhes dá tempo suficiente para as apresentações e um estudo superficial das provas. Esse tempo claramente não é suficiente para que eles apresentem uma defesa apropriada, preparem um pedido de habeas corpus ou peticionem para que as acusações sejam retiradas. Na prática, isto significa que a influência de juízes e promotores na determinação do andamento de um processo específico não será, em grande medida questionada pela defesa. Como observado pelo Relator Especial das Nações Unidas, Leandro Despouy, “um país no qual mais da metade da população (70 milhões de pessoas) vive abaixo da linha da pobreza e no qual há desigualdades gritantes precisa que a Defensoria Pública seja mais dinâmica do que a atual, que é bastante limitada, embora louvável. . . . Não obstante a enorme quantidade de trabalho feita por esta instituição, ela não é capaz de preencher todas as necessidades. Onde quer que ela funcione, carece de recursos orçamentários, pessoal e estruturas de suporte (informática, por exemplo, da qual ela tem pouco, ou nada) de que precisa para realizar sua imensa tarefa.174 3.50 Tanto a Constituição de 1988 quanto a lei de 1994 dão aos estados federados considerável liberdade de manobra para decidir quando e como estabelecer suas Defensorias Públicas, o que causou preocupações tanto sobre a sua independência quanto sobre se eles receberiam recursos adequados. A Constituição especifica que a Defensoria Pública será independente do Estado brasileiro, o que implica que ela deve ser financeira e administrativamente autônoma; contudo, a Defensoria Pública é uma organização muito menor e mais fraca do que o Ministério Público, com o qual é frequentemente comparada. 3.51 Uma análise realizada pela Secretaria da Reforma do Judiciário, em 2006, mostrou variações consideráveis no tamanho, orçamentos, cargas de trabalho, salários e padrões de recrutamento entre diferentes Defensorias em todo o país.175 Foi constatado que, embora a cobertura das Defensorias Públicas estivesse aumentando, ela ainda alcançava somente 39,7 por cento de todos os juízos e tribunais do país. O levantamento também constatou que havia um total de 6.575 cargos para defensores públicos no país como um todo, mas somente 3.624 deles haviam sido 174 Despouy, E/CN.4/2005/60/Add.3, 22 de fevereiro de 2005, par. 38. 175 Defensoria Pública, Diagnóstico II, Ministério da Justiça, 2006, p.106. 54 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 preenchidos, o que significava que cerca de 45 por cento estavam vagos na ocasião em que o levantamento foi realizado. Várias Defensorias Públicas estão experimentando problemas no preenchimento de vagas, o que pode ser parcialmente devido ao fato de que os salários são muito mais baixos do que os dos juízes e promotores. Embora a pesquisa mostrasse algum progresso com relação a uma similar de dois anos antes, é claro que as Defensorias permanecem cronicamente sub-financiadas e são mais fracas nos estados mais pobres, onde a necessidade delas é provavelmente maior. Dois dos estados mais populosos do Brasil, Rio Grande do Norte e São Paulo, não haviam estabelecido Defensorias Públicas até 2005 e 2006, respectivamente. O estado sulino de Santa Catarina ainda não estabeleceu a sua Defensoria Pública. 3.52 Para mitigar esta necessidade, alguns estados usaram advogados particulares inscritos pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para suplementar o serviço. São Paulo, o maior estado do Brasil, também foi um dos últimos a criar uma Defensoria Pública; contudo, ele administra um serviço de assistência judiciária desde os anos cinquenta, usando advogados particulares. Este esquema hoje é extremamente abrangente, com a OAB contratando cerca de 43.000 advogados todos os anos, que recebem alguns recursos públicos para representar os pobres. Infelizmente, há alguns problemas com este serviço pro bono. Os advogados recebem somente R$ 500,00 por processo, o que são honorários minúsculos em comparação com a quantidade de tempo que geralmente está envolvida na representação de alguém em um processo criminal, e significa que é improvável que eles dediquem tempo suficiente para fazer um trabalho profissional apropriado. Há pouco monitoramento e avaliação da eficácia do serviço, embora as evidências disponíveis sugiram um baixo grau de satisfação dos usuários.176 3.53 Este serviço também não oferece as mesmas garantias de autonomia e independência de uma Defensoria Pública devidamente dotada de recursos, mas ele criou alguma rivalidade institucional com a OAB em alguns locais. Na ocasião da publicação deste relatório, havia um processo em andamento no STF entre a Defensoria Pública e a OAB em São Paulo. Nesse ínterim, a prestação de assistência judiciária em trabalhos de defesa criminal permanece extremamente desigual através do país. De fato, parece ter havido poucas melhorias desde que a Anistia Internacional fez a seguinte avaliação no seu Relatório de 1999: 177 “Todos os estados devem oferecer assistência judiciária aos presos que não possam pagar um advogado de defesa particular. A maioria o faz, mas o serviço é terrivelmente sub-financiado e incapaz de atender a demanda. O estado do Ceará tinha um total de 10 advogados dativos para tratar de mais de 3.600 presos. No estado do Rio de Janeiro, em março de 1998, o estado empregava 700 promotores e 425 advogados dativos em atividade. O estado tinha 180 vagas não preenchidas para os últimos, embora parte da carência tenha sido suprida por advogados da Ordem dos Advogados e outros voluntários. Os detentos podem esperar meses, ou até anos, antes que os seus processos cheguem a julgamento e eles recebam um advogado de defesa. Muitos advogados de defesa apresentam somente uma defesa superficial, devido a limitações de tempo. Muitos presos não são transferidos para regimes prisionais mais leves nas datas devidas ou não recebem liberdade condicional devido à falta de representação legal e a uma carência de outros funcionários vitais, como juízes, promotores públicos e profissionais necessários para emitir pareceres sobre o progresso dos presos. Alguns presos até mesmo cumprem penas 176 Vieira, 2008, p.243, citando pesquisa de Luciana Gross Siqueira Cunha, Acesso à justiça e assistência jurídica em São Paulo, 2001. 177 Op. cit. 45, par. 4.5. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 55 mais longas do que as suas sentenças originais porque a papelada necessária para libertá-los é atrasada, resultando em prisão ilegal. A falta de assistência jurídica e a extrema lentidão da análise de pedidos de transferências ou de direitos é uma das maiores fontes de frustração para os presos e é uma queixa comumente verbalizada durante protestos”. 3.54 Em estados como Pernambuco, que não tem nenhuma defensoria pública, ou em outros onde há grave déficit, estudantes de direito compensam parte da carência e trabalham voluntariamente com organizações locais de direitos humanos para examinar a situação legal dos presos e ver se eles estão qualificados para liberdade, liberdade condicional ou transferência. O Ministério da Justiça tem encorajado um esforço nacional, prevendo que 16.000 presos detidos ilegalmente seriam libertados. Em outubro de 1997, o estado do Rio de Janeiro transferiu 486 presos condenados das delegacias de polícia para o sistema prisional e oito detidos presos indevidamente foram libertados. Em Pernambuco, o GAJOP, uma ONG de direitos humanos, coordenou a assistência judiciária voluntária em três prisões em 1997/1998, em conjunto com a Secretaria da Justiça. Contudo, eles observaram que haviam encontrado resistência e obstrução de agentes penitenciários, demonstrando que, embora tal ação voluntária possa ser uma medida de curto prazo útil, ela não é uma solução permanente. 3.55 Em outubro de 2009 uma nova lei federal foi aprovada pelo Congresso para fortalecer a Defensoria Pública no nível federal. Ela usou o recentemente criado escritório em São Paulo como modelo, garantindo sua autonomia financeira e administrativa e introduzindo uma função de ouvidoria (ombudsman) para supervisionar os trabalhos dos defensores públicos federais. Atualmente há menos de 100 defensores públicos federais, em comparação com 1.478 juízes federais. 3.56 A Defensoria Pública também está reivindicando, tanto em um processo no STF quanto através de lobby no Congresso, uma expansão do seu papel e dos seus poderes, de modo que possa assumir casos de “interesse público” de maneira similar ao Ministério Público. Isto habilitaria seus/suas advogados(as) a conduzir investigações, exigir informações de autoridades públicas e expor o descumprimento da lei por órgãos públicos. Isto também fortaleceria a sua luta por salários iguais e garantias de independência similares ao Ministério Público, que, presumivelmente, opõe-se a tal mudança. Prisões e reforma penal 3.57 Embora a política penal brasileira seja regida por uma lei federal, a Lei de Execuções Penais, o país não tem uma autoridade prisional centralizada com poderes executivos, e a administração das prisões é realizada principalmente em nível estadual. O governador estadual geralmente administra o sistema prisional através do seu secretário da justiça, enquanto que o secretário de segurança pública geralmente controla o policiamento, o que inclui a responsabilidade por delegacias de polícia e carceragens. Contudo, isto está sujeito a algumas variações. A estrutura dos sistemas penais estaduais também não segue um modelo único e há variações consideráveis em questões como os níveis de superpopulação carcerária, os custos mensais por presidiários e os salários dos agentes penitenciários. 3.58 As duas agências federais envolvidas com a política prisional estão situadas no Ministério 56 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 da Justiça: O Departamento Penitenciário ou DEPEN e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária; o primeiro está encarregado principalmente de questões práticas, como o financiamento da construção de novas prisões, enquanto que o segundo concentra-se na política de direção. Os estados também podem criar DEPENs locais. O Conselho Nacional é responsável pela publicação do censo prisional nacional, que contém informações e estatísticas úteis sobre presos, funcionários das prisões, custos de encarceramento e sobre o estado da infraestrutura prisional no Brasil. Isto deveria orientar a política prisional nos níveis estadual e federal, embora a separação dos diferentes órgãos algumas vezes conduza à fragmentação. A Lei de Execuções Penais também especifica que o Judiciário, o Ministério Público, os Conselhos Penitenciários locais e os Conselhos da Comunidade desempenham um importante papel de monitoramento, administrativo ou de supervisão.178 Uns poucos estados também criaram cargos de ouvidores (ombudsmen) prisionais, e um cargo de ouvidor federal foi criado em 2004. 3.59 A população carcerária do Brasil está distribuída entre várias categorias de instalações, incluindo penitenciárias e presídios, cadeias públicas e cadeiões, casas de detenção e carceragens em distritos policiais ou delegacias. Os suspeitos de crimes, ao serem presos, devem ser levados a uma carceragem policial, para registro e detenção inicial, onde eles devem ser mantidos por, no máximo, alguns dias, antes de serem acusados ou liberados. Se o/a suspeito(a) não é liberado, ele ou ela deve ser transferido para uma cadeia pública ou casa de detenção, para aguardar julgamento e sentenciamento. Se condenado, o preso deve ser transferido para uma instalação separada. 3.60 Presos condenados devem ser mantidos em uma dentre três categorias básicas de instituição: instalações fechadas, instalações semi-abertas e prisões-albergue. A instalação fechada usual é o presídio. As instalações semi-abertas incluem unidades de segurança mínima, onde se espera que o preso trabalhe e receba treinamento. Prisões albergues são locais onde um preso dorme à noite, mas é autorizado a ir e vir durante o dia. O juiz sentenciante especificará em qual instalação o preso deve ser colocado inicialmente – de conformidade com o tipo de crime, extensão da pena, condenações anteriores, periculosidade percebida e outras características – mas, por lei, um preso deve esperar mudar de uma instalação de maior segurança para uma de menor segurança durante o curso da sua sentença. O objetivo da política penal brasileira é a reabilitação e reintegração do preso de volta à sociedade e assim, a mudança para um tipo de instalação cada vez menos restritivo é para preparar o preso para a eventual liberdade. 3.61 A lei especifica o caminho de um preso através do sistema penal em detalhe considerável. Após a condenação, um preso deve passar as suas primeiras semanas ou meses em um centro de observação, onde um grupo de funcionários treinados pode conduzir entrevistas e realizar exames de personalidade e criminológicos para avaliar seu comportamento e suas atitudes, de modo a escolher a instalação penal mais apropriada para aquele indivíduo em particular. Na prática, contudo, as prisões no Brasil carecem tanto de pessoal quanto de infraestrutura para cumprir a lei. Muitos estados não têm prisões-albergue nem nada parecido com o número de unidades de segurança mínima para atender o número de presos sentenciados – que, ao invés disto, esmagadoramente cumprem toda a sua pena em instalações de alta segurança. De fato, o Brasil não tem nem mesmo vagas suficientes nas prisões para acomodar todos os seus presos, 178 Lei de Execuções Penais, Artigo 61. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 57 apesar da maciça superpopulação existente, e assim, ao invés disto, muitos presos condenados permanecem anos em carceragens policiais. Durante o curso da pesquisa para este relatório, uma carceragem policial foi visitada no Rio de Janeiro, onde um policial estava custodiando cerca de 600 indivíduos aguardando julgamento. As condições nas quais eles estavam sendo mantidos pareciam violar as leis e disposições constitucionais do Brasil. 3.62 A Lei de Execuções Penais especifica que cada estado deve estabelecer um Conselho Penitenciário local e um Conselho da Comunidade local. Os conselhos penitenciários são responsáveis por fazer recomendações aos juízes no tocante a cada preso, indicando se ele deve receber liberdade condicional, indulto ou ter sua sentença comutada, e se ele deve ser transferido para níveis de segurança mais baixos. Embora cada estado deva ter um tal conselho, uma pesquisa realizada em 2004 indicou que oito estados ainda não o tinham. 179 Os deveres dos conselhos da comunidade devem incluir visitas a cada instituição penal, entrevistas com presos e apresentação de relatórios mensais tanto ao Conselho Penitenciário quanto ao juiz da vara de execuções penais.180 Na prática, muitos estados não constituíram Conselhos da Comunidade e, mesmo onde eles de fato existem, são de eficácia limitada. Frequentemente eles são sub-financiados – já que a lei não especifica a alocação de um nível mínimo de suporte – e seus membros leigos com frequência não têm tempo nem interesse de trabalhar para eles.181 Também têm havido casos em que as autoridades penitenciárias negam acesso a conselhos da comunidade tentando fazer visitas.182 3.63 O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária também deveria visitar locais de detenção, embora a frequência de tais visitas não esteja especificada por lei.183 Parece que tais visitas são realizadas somente de maneira muito limitada e não-frequente e nem o seu relatório anual, nem o seu cronograma de visitas, são rotineiramente divulgados. Já que estes conselhos também processam os pedidos dos presos de liberdade condicional e outros benefícios, isto cria uma carga de trabalho tão excessiva que a inspeção das prisões não pode ser realizada de maneira profunda ou rotineira. A lei também especifica que o DEPEN deve realizar inspeções prisionais, embora estas estejam mais relacionadas a questões administrativas relativas à gestão e manutenção das prisões. 3.64 Os resultados de inspeções raramente são tornados públicos e, embora algumas pessoas mostrem comprometimento considerável com o monitoramento das prisões, a falta de coordenação entre os diferentes órgãos fiscalizadores significa que eles frequentemente repetem os seus próprios esforços. Frequentemente eles também são restringidos devido à falta de pessoal e de recursos. Como a Anistia Internacional observou, as inspeções geralmente são consideradas como secundárias com relação a outros deveres oficiais que recebem prioridade e que podem criar conflitos de interesses.184 O relatório da Anistia observou tanto algumas práticas boas quanto ruins com relação ao monitoramento prisional: 3.65 No estado de São Paulo, o juiz corregedor e 12 juízes assistentes são responsáveis por monitorar 179 Fernando Salla, Paula Ballesteros, Olga Espinoza, Fernando Martinez, Paula Litvachky e Anabella Museri, Democracia, direitos humanos e condições das prisões na América do Sul, Centro para o Núcleo de Estudos da Violência, Universidade de São Paulo, junho de 2009, p.76 . 180 Lei de Execuções Penais, Artigo 81. 181 Fernando Salla, Paula Ballesteros, Olga Espinoza, Fernando Martinez, Paula Litvachky e Anabella Museri, Democracia, direitos humanos e condições das prisões na América do Sul, Núcleo deCentro para o Estudos da Violência, Universidade de São Paulo, junho de 2009, p.74 . 182 Índice AI: AMR 19/023/2007. 183 Lei de Execuções Penais, Artigo 64. 184 Índice AI: AMR 19/023/2007. 58 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 prisões na área da Grande São Paulo e por investigar reclamações de maus-tratos e má- administração, assim como por supervisionar as sentenças de cerca de 50.000 presos, e por processar solicitações de liberdade condicional, remissão, indultos, e assim por diante. Esta responsabilidade combinada deixa pouco tempo livre para inspecionar as prisões da região da Grande São Paulo. Em alguns estados, contudo, os escritórios do juiz corregedor das prisões e do juiz que supervisiona o cumprimento das penas são separados. Isto não somente reduz a carga de trabalho, permitindo que os juízes cumpram os seus deveres com maior eficiência, mas também elimina o potencial de conflitos de interesses. No presente, uma série de órgãos com poderes para inspecionar prisões, como os Conselhos de Assuntos Penais, os juízes responsáveis por supervisionar o cumprimento das penas e o Ministério Público também decidem sobre aspectos das penas dos presos. Como resultado disto, os presos podem não ter confiança na independência destes órgãos. Quando os estados têm somente o escritório do juiz sentenciante, os juízes podem restringir-se a dar encaminhamento aos processos dos presos, ao invés de exercer uma participação ativa no bem-estar dos mesmos.185 3.66 O Ministério Público e o Judiciário também têm um papel de monitoramento sobre as condições das prisões e espera-se que ambos os órgãos realizem inspeções mensais. Conforme descrito acima, esta obrigação geralmente não é observada, embora os dois órgãos estejam trabalhando juntos nos mutirões. A Anistia citou um juiz corregedor em São Paulo que disse que, à taxa de uma visita por mês, cada delegacia de política a seu cargo seria visitada menos de uma vez a cada três anos. Na realidade, esta equipe de oito funcionários somente visitava delegacias de polícia a respeito das quais eles tinham suspeitas ou haviam recebido denúncias. As investigações consistiam principalmente em entrevistar presos e seus parentes, assim como os funcionários da prisão. Os juízes não tinham nenhum treinamento médico e nenhuma perícia médica para basear-se, e não havia nenhum requisito para que os agentes penitenciários mantivessem fotografias ou outros registros de ferimentos que pudessem ser inspecionados posteriormente. Os juízes não têm poderes para iniciar processos contra agentes penitenciários ou policiais, mas ao invés disto eles encaminham qualquer material que possa ser relevante ao Ministério Público, que está habituado a iniciar investigações criminais em tais casos. 186 3.67 O relatório da Anistia Internacional observou que o estabelecimento de escritórios penitenciários e ouvidorias penitenciárias em alguns estados havia trazido algumas melhorias, mas estes órgãos frequentemente careciam de recursos e poderes suficientes para serem eficazes. Os juízes frequentemente estavam sobrecarregados demais investigando alegações de má administração da polícia para cumprir o seu papel de monitoramento das prisões. O juiz corregedor de São Paulo citado acima também tinha responsabilidade de verificar o andamento de cerca de 55.000 investigações policiais por ano, restando pouco tempo disponível para inspecionar delegacias de polícia ou investigar denúncias de presos. 3.68 O relatório sustentou que uma reforma penitenciária é atingível sem grandes custos extras e que há inúmeros exemplos de boas práticas que poderiam ser implementadas em nível nacional. Ele defendeu o maior uso de penas alternativas, “segurança dinâmica” nas prisões e mais envolvimento das famílias e grupos comunitários dos presos no monitoramento dos locais 185 Ibid. 186 Ibid. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 59 de detenção. Ele concluiu que o desafio chave diante dos governos estaduais e do governo federal estava em identificar, analisar e aprender com base nestas experiências positivas para reproduzi-las dentro das políticas governamentais.187 3.69 A Anistia Internacional também recomendou a constituição de “um órgão exclusivo que realizaria visitas regulares, usando uma metodologia coerente, com objetivos bem definidos. Tal órgão seria composto preferencialmente de especialistas em prisões e o objetivo da inspeção seria prevenir abusos e estimular boas práticas diárias. As visitas deveriam ser rotineiras e não anunciadas previamente. A inspeção também deveria ser bastante diferente da investigação de denúncias, que são assuntos para o Judiciário e para a polícia”. Ela concluiu que “os direitos e condições de detenção dos presos, contudo, seriam consideravelmente melhorados, em alguns casos, com pouco ou nenhum custo adicional, se as prisões fossem regular e efetivamente inspecionadas. Tais inspeções seriam realizadas tanto por um órgão governamental quanto por representantes da comunidade e de grupos de direitos humanos locais. Os exemplos de boas práticas citados ao longo deste relatório demonstram que muitas mudanças positivas podem ser introduzidas se as prisões forem geridas de forma transparente e passível de responsabilização, com respeito pelos direitos humanos dos presos e envolvimento ativo da comunidade e do Judiciário locais”.188 187 Ibid. 188 Ibid. 60 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 CaPÍTULo QUaTRo EnConTRando Uma SaÍda a agenda da reforma 4.1 Como mostram as três seções anteriores deste relatório, é difícil considerar os problemas específicos relativos ao acesso à Justiça na detenção anterior ao julgamento, isolados do contexto da crise dos sistemas de Justiça criminal e penitenciário brasileiros e do problema mais amplo de combater o crime na sociedade. De fato, focar unicamente em tentar consertar uma área específica, através de novas leis ou da criação de novas instituições, poderia piorar a situação atual, acrescentando novos níveis de burocracia e confusão a um sistema já inoperante. 4.2 Já que há consenso generalizado de que o sistema é inacessível e está sobrecarregado, nenhum problema pode ser tratado isoladamente dos outros e uma agenda de reforma bem-sucedida precisará abordar ambos problemas holisticamente. Medidas para aumentar o acesso à Justiça, por exemplo, assegurando que os réus de julgamentos criminais recebam representação legal adequada, devem ser acompanhadas de medidas para lidar com o acúmulo de processos confrontando o Judiciário, ou o sistema simplesmente ficará paralisado. Similarmente, uma reforma do Judiciário objetivando aumentar a eficiência do sistema não pode ignorar o fato de que o sistema atual não somente é visto como remoto e injusto pela maioria dos brasileiros, mas também é percebido como havendo sido incapaz de desafiar a corrupção e a impunidade entre os responsáveis por fazer e cumprir as leis. 4.3 Reduzir o número de brasileiros enviados para a prisão exigirá o desenvolvimento de alternativas mais eficazes de detenção antes do julgamento com supervisão adequada, bem como sentenciamento não-custodial e programas que estimulem a reabilitação dos criminosos. Isto precisa ser acompanhado de projetos sociais que combatam as raízes da violência e do crime. Ao mesmo tempo, o sistema de Justiça precisa se tornar mais acessível e eficaz na salvaguarda dos direitos das pessoas. Muitas tentativas de reforma anteriores surgiram como resultado de pressão externa, como os relatórios de órgãos internacional de monitoramento de direitos humanos. Embora elas tenham tido algum sucesso, há limites quanto a quão eficazes as soluções importadas podem ser. Ao invés disto, mais esforço precisa ser dedicado para fazer com que as peças existentes do sistema trabalhem melhor juntas e para estimular o desenvolvimento de uma reforma gradativa e de origem doméstica. 4.4 O mutirão, por exemplo, conseguiu libertar mais de 15.000 pessoas que não deveriam estar na prisão. Embora seja somente uma solução paliativa, as experiências daqueles que estiveram envolvidos nele deveriam ser usadas para identificar falhas sistêmicas ou áreas de preocupação em Estados específicos e para focar reformas. O mutirão também mostra o que pode ser atingido com comparativamente poucos recursos, mas boa liderança política da cúpula do Judiciário. A pesquisa realizada para a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) por Maria Tereza Sadek, citada na introdução deste relatório, também mostrou que uma melhor gestão Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 61 nos tribunais poderia levar a um Judiciário muito mais eficiente e eficaz, mesmo sob as restrições da atual falta de recursos. Como descrito abaixo, os esforços coordenados daqueles trabalhando dentro de instituições estaduais e da sociedade civil brasileira proporcionaram alguns avanços tangíveis no sistema de justiça como um todo – embora eles tenham falhado largamente em tratar dos problemas específicos da justiça criminal descritos neste relatório. 4.5 O problema básico da implementação de todas as reformas no setor da Justiça é mobilizar a vontade política necessária para superar a resistência institucional entranhada que elas provavelmente enfrentarão. Há um longo histórico de lobbies de interesses especiais de diversas partes do Estado corporativista brasileiro e essa é uma das razões pelas quais tentativas de reformas anteriores falharam em atacar os problemas subjacentes do sistema. O Relator Especial das Nações Unidas Leandro Despouy observou em 2004 que ele “encontrou grande prontidão para debater a questão [da reforma do Judiciário] em círculos judiciais e com outros profissionais do direito, o que mostra como as pessoas extremamente bem qualificadas que trabalham neste setor estão intimamente envolvidas e ardentemente interessadas nesta questão. Contudo, embora a maioria deles concordassem com a análise, o mesmo não pode ser dito das mudanças propostas, que tendem a proteger os interesses imediatos de cada grupo”.189 4.6 Fiona Macaulay salienta que a questão da reforma do Judiciário “tem aparecido intermitente e insistentemente na agenda política, mas nunca no topo”.190 Ela observa que a reforma do Judiciário tem sido um processo “para-começa”, no qual o governo frequentemente tem sido reativo nas suas ações, ao invés de levar o processo a frente. Tem havido uma rotatividade extremamente alta de Ministros da Justiça no Brasil -17 entre 1985 e 2002 – o que tornou difícil a continuidade política. Ela também observa que o Brasil excluiu-se do tipo de programa de reforma do Judiciário que doadores internacionais têm promovido em outras partes da América Latina e que “o nacionalismo nos níveis mais altos do Judiciário criou uma atitude de auto-suficiência e suspeita com relação a modelos externos de reforma”.191 Fortalecimento das instituições da Justiça: desafios e respostas 4.7 Todavia, o governo atual teve alguns sucessos impulsionando o processo. A promulgação final da Emenda Constitucional 45 em 2004 foi controversa, mas as suas duas reformas principais parecem de um modo geral ter produzido resultados positivos. A introdução da súmula vinculante parece ter efetivamente cortado o número de processos que chegam ao STF. O CNJ também mostrou a sua eficácia na promoção de iniciativas como o mutirão. Conforme exaustivamente discutido neste relatório, a causa para maior supervisão e responsabilização do Judiciário brasileiro é forte e o CNJ precisará estar preparado para tomar medidas duras para provar que é um órgão de monitoramento eficaz. 4.8 Um dos desafios chave da reforma do Judiciário no Brasil é que a estrutura legal, constitucional e institucional regendo o sistema está no nível federal, mas a prestação efetiva da justiça é responsabilidade dos estados. Isso significa que, embora seja necessário um conjunto de batalhas políticas para realizar uma reforma política ou legislativa, outro conjunto é necessário 189 Despouy, E/CN.4/2005/60/Add.3, 22 de fevereiro de 2005, par. 66. 190 Macaulay, 2003, p.84. 191 Ibid., p.100. 62 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 no nível estadual para implementá-la. No caso da Justiça criminal, isto envolve tratar de um conjunto mais amplo de preocupações de segurança pública e coordenar a reforma com o setor da justiça e a polícia. Isto também significa relacionar-se com um público que é esmagadoramente hostil ao conceito de defender os direitos de pessoas na prisão. 4.9 A falha notável do Judiciário em lidar com os níveis crescentes do crime é usada frequentemente como argumento para reduzir os “direitos” teóricos supostamente desfrutados pelos réus no sistema de justiça criminal. Ademais, a espantosa lista de violações sofridas por presos no Brasil mostra que a capacidade deles de exercer tais direitos é quase inteiramente ilusória. Um sistema mais eficiente seria mais eficaz tanto para garantir os direitos básicos aos quais todas as pessoas privadas da liberdade têm direito, quanto na prevenção de alguns dos abusos bastante divulgados que caracterizam o sistema atual. 4.10 O fortalecimento das instituições da Justiça obviamente exigirá mais recursos, mas isso precisa ser acompanhado de reformas que as tornem mais justas, mais rápidas, mais acessíveis e economicamente viáveis. Conforme discutido acima, melhores gestão e liderança política poderiam fazer com que o sistema existente trabalhasse muito melhor. A experiência de grupos comunitários e ONGs de direitos humanos locais, que prestam serviços de assistência judiciária e desenvolvem serviços de justiça comunitários, mostrou o que pode ser atingido em pequena escala e que poderia ser construído em nível nacional. 4.11 O aumento assombroso do número de pessoas mantidas em prisão provisória no Brasil acrescentou uma certa urgência ao debate sobre como chegar a isto. Os tribunais e prisões do Brasil têm sido esmagados pelo número de processos e de presos com que têm que lidar. Até mesmo uma grande aceleração do seu programa de construção de presídios provavelmente não acompanharia o aumento atual daqueles números e é provável que seja uma reação onerosa e ineficaz, dado o impacto documentado do encarceramento sobre a reincidência. 4.12 O governo brasileiro tem declarado repetidamente ser a favor de limitar as sentenças privativas de liberdade aos culpados de crimes graves e tem promovido o uso de penas alternativas não privativas de liberdade pelos juízes. Como observado acima, uma lei aprovada em novembro de 1988 ampliou a gama de penas não privativas de liberdade disponíveis aos juízes para criminosos não violentos que de outra forma receberiam penas de prisão de até quatro anos.192 Previu-se na ocasião que isso reduziria a pressão sobre o sistema carcerário, liberando cerca de 10.000 vagas nos presídios. Contudo, outras leis, geralmente promulgadas devido à revolta pública com algum crime muito divulgado, impuseram penas mais duras para uma gama de crimes, resultando numa política de apenamento cada vez mais contraditória. Enquanto isso, o aumento contínuo do número de detidos antes do julgamento mais do que cancelou os efeitos que o apenamento alternativo poderia ter tido na redução geral da população carcerária. 4.13 Embora as políticas de “apenamento alternativo” tenham falhado em prevenir o aumento contínuo do número de presos brasileiros, os tribunais em alguns Estados estão usando-as cada vez mais e os indícios parecem demonstrar que elas reduzem a taxa de reincidência. Alguns Estados também foram os pioneiros em uma série de programas sociais inovadores visando à reabilitação de criminosos. Outro projeto iniciado pelo CNJ, o Começar de Novo, visa obter o 192 Lei 9.714/98, que alterou a Lei 7.209/84. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 63 apoio de empresas brasileiras que concordem em contratar ex-presidiários para ajudá-los na sua reabilitação e reintegração à sociedade. O objetivo é oferecer 30.000 empregos ou cursos de especialização para ex-criminosos a cada ano, com a meta estratégica de reduzir as taxas de reincidência a 20% – a partir da sua estimativa atual de 70%.193 4.14 O CNJ também está apoiando um projeto, Núcleos de Advocacia Voluntária, que presta um serviço rudimentar de assistência judiciária criminal em alguns Estados, particularmente no Norte e Nordeste. Ele usa estudantes, professores de direito e outros advogados voluntários para prestar aconselhamento jurídico elementar a indivíduos em prisão provisória. Embora ambos os projetos ainda estejam nos seus primórdios, eles complementam as atividades de uma variedade de outros grupos da sociedade civil brasileira descritos abaixo. Estes projetos são parte de uma iniciativa mais ampla do CNJ e do Ministério da Justiça para promover mudanças no sistema de justiça criminal, para assegurar que ele cumpra as suas obrigações legais atuais, assegurando que todos desfrutem do direito à defesa e à reabilitação social.194 Os grupos brasileiros de direitos humanos e da sociedade civil precisam unir-se com projetos similares que combinem defesa política com apoio de linha de frente para os detidos antes do julgamento. 4.15 A necessidade de “pensamento conjunto” quanto a esta questão pode ser ilustrada pelas experiências do Brasil usadas até agora na tentativa de combater crimes violentos. Em 2003, sob pressão de grupos da sociedade civil, o governo introduziu uma medida para restringir a venda e posse de armas de fogo. Após um longo debate parlamentar, o Congresso aprovou um Projeto de Lei que impôs várias restrições ao porte de arma por indivíduos. Uma anistia e um programa de recompra subsequentes tiraram meio milhão de armas das ruas. Embora um plebiscito nacional para restringir a venda de armas tenha sido derrotado, acredita-se amplamente que as restrições em vigor conduziram a um constante declínio de tiroteios. O Projeto de Lei também continha uma disposição mais severa que teria proibido qualquer tipo de comércio de armas, mas esta especificamente somente entraria em vigor se aprovada por um plebiscito nacional. O resultado do plebiscito foi negativo, com a maioria dos observadores concordando que o medo do crime entre os brasileiros de classe média foi a causa principal da grande votação do “não”. Consequentemente, hoje a venda de armas é legal, embora as restrições ao porte de armas ainda estejam em vigor. 4.16 Aproximadamente 70% dos assassinatos no Brasil envolvem armas de fogo. Os oponentes da restrição diziam que a melhor proteção para os “cidadãos cumpridores da lei” era também poder portar suas próprias armas. Eles também defenderam uma abordagem mais punitiva ao crime. Os apoiadores da restrição defenderam a retirada de circulação do maior número de armas possível e programas sociais mais eficazes, para combater o crime nas suas raízes. A derrota do plebiscito mostrou a força de argumentos populistas nesta questão. Todavia, as restrições que foram introduzidas recebem amplo crédito pela redução de mortes por arma de fogo, que tiveram o seu pico em 2003/2004 e declinaram em anos subsequentes. A taxa de assassinatos per capita em São Paulo caiu pela metade entre 2003 e 2008, enquanto o Rio de Janeiro também viu um declínio significativo, embora mais modesto.195 193 Conselho Nacional de Justiça, O Sistema Prisional Brasileiro, CNJ, 25 de novembro de 2009. 194 Ver o Artigo 1º da Lei 7.210. 195 conomist, “Assassinato no Brasil”, 21 de agosto de 2008. 64 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 4.17 A campanha do plebiscito também uniu uma gama de grupos brasileiros de direitos humanos e comunitários, muitos dos quais estão diretamente envolvidos na administração destes tipos de programas sociais. De acordo com pesquisas de opinião, houve uma grande votação a favor do banimento nas favelas e em algumas das partes mais pobres do país, mas isso foi compensado por um pesado voto no “não” nas áreas mais ricas. A campanha mostrou que aqueles mais afetados por crimes violentos estão entre os que mais provavelmente apoiarão medidas para reduzi-los. Isto indica o quanto um ativismo similar funciona para reformar o sistema de Justiça criminal. 4.18 Embora seja difícil obter estatísticas totalmente exatas, o crime como um todo no Brasil parece haver diminuído ou pelo menos permanecido estático em anos recentes.196 Acredita-se que investimentos governamentais em áreas carentes, melhor prestação de serviços, as alterações demográficas da população do Brasil e alguns programas sociais pioneiros das sociedade civil contribuiram para isto. 197 Os anos recentes também viram um aumento nos padrões de vida da população como um todo, como resultado de um longo período de crescimento econômico estável, do aumento do salário mínimo e da implementação de um programa de transferência de dinheiro em larga escala para os brasileiros mais pobres, conhecido como Bolsa Família. A sociedade brasileira tem se tornando mais igualitária, triturando uma tendência global a maior desigualdade; as inúmeras pessoas vivendo em pobreza absoluta e relativa declinaram. As taxas de natalidade estão caindo, o que impactará nos níveis de criminalidade, de acordo com as experiências de outros países, e então, há algumas boas razões para o otimismo de que o Brasil possa atingir uma redução da sua taxa de criminalidade a longo prazo. a necessidade de um policiamento mais eficaz 4.19 A polícia também parece ter melhorado na apreensão de suspeitos, já que as taxas de prisão e de condenação aumentaram drasticamente em alguns locais. Medidas como o aprimoramento da inteligência policial, melhoria do treinamento e das condições de pagamento e de trabalho, combate a corrupção, restrição a segundos empregos para policiais e movimento para o policiamento comunitário foram eficazes nas regiões do país onde foram implementadas. Em São Paulo foi estabelecido um novo esquadrão de homicídios que elabora perfis computadorizados a fim de identificar padrões e agir preventivamente. O estado investiu em uma rede de comunicação para interligar informações das polícias militar e civil; um sistema geográfico de informações de modo que os crimes possam ser rastreados por área, por base de dados de fotografias de criminosos, por software de computador ligando as informações dos relatórios policiais a registros bancários, telefônicos e residenciais. Mais ênfase também foi dada à prevenção de crimes e à formação de elos com as comunidades, cuja disposição para fornecer informações permanece um dos meios mais eficazes por meio dos quais a polícia pode melhorar os índices de detenção. 4.20 Algumas destas reformas ainda encontram considerável resistência dentro da própria polícia que, no entanto, é particularmente resistente ao monitoramento mais eficaz de violações de direitos humanos praticadas por policiais. Em muitos lugares, como o Rio de Janeiro, a 196 Julio Jacobo Waiselfisz, Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros, Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura, OEI, fevereiro de 2007. 197 Globo, “Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros mostra queda dos assassinatos desde 2004”, 29 de janeiro de 2008. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 65 polícia ainda confia numa abordagem militar de confronto. A corrupção também é um grande problema em muitos batalhões policiais, e casos individuais de tortura e execução extrajudicial continuam sendo registrados em todo o país. O sucesso fenomenal do filme Tropa de Elite, que glamorizou o trabalho da mal-afamada unidade policial BOPE, atacou o trabalho de ONGs que realizam projetos sociais nas favelas e , ao mesmo tempo, mostrou que a sociedade brasileira permanece profundamente dividida quanto a esta questão. 4.21 Obviamente, é melhor para a polícia prender criminosos suspeitos a matá-los. Contudo, se as taxas de detenção e prisão policial aumentarem e os tribunais se tornarem mais eficazes na condução dos julgamentos, o sistema penal, que já está sobrecarregado, sofrerá ainda mais pressão. Isto também aumentará o risco de injustiças, tornando mais importante a prestação de defesas legais eficazes. O policiamento mais eficaz, desacompanhado de reformas em outras partes do sistema, provavelmente, gerará impacto direto no aumento da população carcerária brasileira e mostrará porque as questões de combate ao crime, reforma penal e direitos humanos não podem ser tratadas isoladamente uma das outras. “Soluções práticas, de origem doméstica” 4.22 Há um consenso geral na sociedade brasileira de que os sistemas de justiça criminal e penal estão próximos do ponto de ruptura, diante do número crescente de processos e de presos. Uma maneira de aliviar a pressão sobre a população carcerária seria reduzir o número de pessoas sendo mantidas em prisão provisória. Outra seria assegurar que esse tipo de prisão só seja usada como último recurso para os crimes mais graves. Juntamente com ambas medidas, mais apoio precisa ser dado a projetos voltados a afastar potenciais criminosos do sistema de justiça criminal, fortalecer o sistema de justiça baseado na comunidade e tornar o sistema existente mais justo, rápido e economicamente viável. O Relator Especial das Nações Unidas, Leandro Despouy, concluiu que havia “uma necessidade urgente de fortalecer a Defensoria Pública” e que o impacto a médio e longo prazo das reformas promulgadas até agora sobre a capacidade de funcionamento da Defensoria deveria ser monitorado. Ele também destacou alguns exemplos de boas práticas mais gerais, como centros de aconselhamento e tribunais itinerantes, que ele observou serem todas elas “soluções práticas e de origem doméstica”, desenvolvidas em regiões específicas do Brasil, “que poderiam ser reproduzidas em outras regiões do país que estejam passando por problemas similares”.198 O tema comum a todas elas é que tais medidas objetivavam “levar a justiça para perto das pessoas”. 4.23 Alguns destes projetos, como os juizados especiais, ou juizados de pequenas causas, são agora uma parte consolidada do sistema judicial brasileiro.199 Criados originalmente em 1984, o papel deles foi consagrado pela Constituição de 1988 e por uma lei federal de 1995, que atribuiu a eles o papel de julgar pequenas causas civis e criminais. Em 1999 existiam mais de 2.500 “pequenos juizados” e eles já haviam finalizado mais de um milhão de processos civis. Os juizados, que podem ser civis e criminais (juizados especiais civis e juizados especiais criminais), lidam com processos até um certo limite financeiro ou com crimes de natura não grave. Os juízos utilizam procedimentos simplificados para julgar os casos. Eles são norteados pelos 198 Ibid., par. 82. 199 Mary Tereza Sadek, “Acesso à justiça: os juizados especiais no Brasil”, manuscrito não publicado. 66 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 princípios da celeridade, informalidade, autorepresentação, oralidade e interação direta entre autores e réus, com o juiz desempenhando o papel de mediador. Os juízos abrem mão de todas as taxas e frequentemente estão situados em bairros mais pobres – embora eles também tenham provado ser muito populares com a classe média, para uso em processos de direitos do consumidor. 4.24 As Delegacias da Mulher (Delegacias da Mulher – DMs) também ficaram internacionalmente famosas por proporcionarem um ambiente no qual as mulheres se sentem suficientemente confiantes para denunciar incidentes de violência que tenham sofrido – frequentemente dos seus companheiros – e para fazer valer os seus direitos em processos de divórcio, guarda e alimentos. A primeira DM foi aberta em São Paulo em 1985 e em 2004 havia 339 delas em todo o país. A cobertura nacional ainda é desigual – com a maioria das DMs concentradas no Sudeste mais próspero, e elas frequentemente carecem de recursos suficientes para funcionar com eficácia. Um estudo pioneiro das DMs, focado no estado da Bahia, no nordeste, realizado por Sarah Hautzinger, advertiu que “a suposição de que policiais femininas proporcionariam um tipo diferente de policiamento – mais consciente do estado de direito democrático do que a brutalidade e repressão que os brasileiros ainda associam às organizações paramilitares sob a ditadura militar – foi verdadeira somente na medida em que providenciou treinamento sobre dinâmica da violência e de gênero”.200 Todavia, ela concluiu que as suas fraquezas não deveriam ofuscar o fato que elas são “ainda o meio mais importante através do qual crimes violentos contra mulheres estão sendo criminalizados em um grau sem precedentes”.201 Recentemente o Brasil promulgou nova lei sobre violência doméstica que determina penas mais duras para os autores e o uso mais freqüente da prisão provisória de suspeitos. Pesquisas sobre o impacto desta lei são urgentemente necessárias. As DMs tendiam a promover a solução de conflitos e mediação entre casais, em vez de uma abordagem legal punitiva. Ainda é preciso aguardar para ver se isto mudará com a nova lei. 4.25 Projetos mais recentes incluem os Centros Integrados de Cidadania (CICs) em São Paulo, que oferecem uma gama de serviços públicos em áreas onde vive a população mais pobre. Os CICs foram introduzidos em 1996 como uma iniciativa conjunta do Executivo, do Judiciário e do Ministério Público em São Paulo. Foram criados sete centros, localizados estrategicamente na periferia da cidade. Os centros proporcionam ao público o acesso a juiz, promotor, policial e representantes das secretarias do trabalho, da habitação, de proteção ao consumidor e bem- estar social. A comunidade local elege um conselho, que é responsável por tomar decisões sobre o uso dos centros. O projeto CIC foi objeto de dois estudos de pesquisa por parte do Ministério da Justiça e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que destacaram o papel deles na redução dos níveis de crimes violentos nas áreas onde estão situados.202 4.26 Outra inovação foi o estabelecimento da “justiça itinerante” em ônibus e, em alguns casos, em barcos, a fim de levar a justiça para mais perto das pessoas, particularmente em áreas 200 Sarah Hautzinger, Violência na cidade das mulheres: a polícia e os espancadores na Bahia, Brasil, University of Califórnia Press, 2007, p.217. 201 Ibid., p.208. 202 Eneida de Macedo Haddad, Jacqueline Sinhoretto, Frederico de Almeida e Liana de Paula, Centros Integrados de Cidadania: desenho e implantação da política pública (2003-2005), Ministério da Justiça – Secretaria Nacional de Segurança Pública e Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2006; e Eneida de Macedo Haddad, Jacqueline Sinhoretto, Luci Gati Pietrocolla, Justiça e segurança na periferia de São Paulo, os centros de integração da cidadania, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2003. Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 67 remotas ou socialmente excluídas. A experiência de um tribunal itinerante foi pioneiramente introduzida no Amazonas e no Distrito Federal, em Brasília, onde resultou na criação do projeto justiça comunitária, que funciona em cidades satélites ao redor da capital.203 4.27 O projeto justiça comunitária foi criado em 2000 da parceria entre o Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, a faculdade de direito da Universidade de Brasília e a Comissão de Direitos Humanos da OAB em Brasília, com o apoio da Secretaria Especial de Direitos Humanos do governo federal. O projeto inaugurou três centros e treinou mais de 100 agentes comunitários, recrutados naquelas áreas. Estas cidades satélites cresceram rapidamente nos últimos anos e experimentam vários dos mesmos problemas sociais das favelas ao redor de outras cidades brasileiras. Os agentes comunitários, que são apoiados por uma equipe de advogados e funcionários psicossociais, agora são capazes não só de prestar assistência judiciária e informações aos seus vizinhos, como também de atuar como mediadores em litígios. O objetivo não é apenas julgar e dirimir litígios pacificamente, mas também usá-los para identificar as necessidades subjacentes da comunidade e defender mudanças. A Secretaria de Reforma do Judiciário e o CNJ escolheram essas experiências para desenvolver um modelo para ser usado na disseminação das boas práticas em todo o país. 4.28 Uma pesquisa do Ministério da Justiça em 2005 identificou 67 programas similares de “acesso a justiça” localizados em 22 dos estados do Brasil.204 Os temas em comum que os unem são que eles tentam tornar as pessoas mais conscientes dos seus direitos, proporcionar mecanismos alternativos de solução de litígios e capacitar comunidades anteriormente marginalizadas. Muitos estão funcionando com recursos mínimos e a existência de alguns foi descrita no relatório como “precária”. Não obstante, a pesquisa tenha concluído que eles prestavam serviços com grande aceitação entre os segmentos mais pobres da sociedade brasileira – particularmente as mulheres – e que suas atividades também aliviavam o Judiciário de algumas das pressões de carga de trabalho que ele enfrenta.205 Esta lista de projetos é apenas parcial e é muito provável que já esteja desatualizada, devido às altas taxas de exaustão e rotatividade que levam os grupos ao colapso. Contudo, os relatórios e as publicações produzidos por eles prestam testemunho impressionante dos esforços cada vez mais dinâmicos da sociedade civil brasileira para tratar desta questão. 4.29 No Rio de Janeiro, por exemplo, uma iniciativa da organização não-governamental (ONG) Viva Rio levou à constituição de um Balcão de Direitos onde uma rede de advogados prestava assistência judiciária gratuita às pessoas que viviam em algumas favelas, sobre questões civis – mas não criminais – e ajudava a mediar conflitos que de outra forma poderiam ter se tornado mais violentos.206 No Pará, a Defensoria Pública, apoiada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, abriu o Escritório de Direitos de Belém, na capital do estado, cujos serviços incluem a emissão de documentos pessoais básicos, reconciliação e mediação em litígios e prestação de aconselhamento e assistência judiciária em questões de direitos humanos e civis. No Rio Grande do Sul, o Escritório do Auditor-Geral está coordenando um projeto para “ouvir a comunidade”, com audiências abertas nas quais membros do público podem debater com juízes, promotores 203 Justiça comunitária, uma experiência, Ministério da Justiça, 2006. 204 Acesso à Justiça por sistemas alternativos de administração de conflitos, mapeamento nacional de programas públicos e não governamentais, Ministério da Justiça, 2005. 205 Ibid., p.14. 206 Paulo Jorge Ribeiro e Pedro Strozenberg, Balcão de direitos, resoluções de conflitos em favelas do Rio de Janeiro, MAUAD, 2001. 68 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 públicos e defensores públicos sobre o funcionamento do sistema judicial e a necessidade de tratar dos problemas de áreas específicas. 4.30 Poucos destes projetos trabalham diretamente a questão da defesa na justiça criminal, que permanece um dos assuntos mais difíceis e controversos a serem abordados na sociedade brasileira. Contudo, há alguns grupos de defesa dos direitos humanos e da justiça que estão abordando esta questão. O Justiça Global, por exemplo, sediado no Rio, desde 1999 documenta casos de tortura e maus-tratos de presos, leva-os ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos e envia relatórios para as Nações Unidas, documentando tortura e outros maus-tratos de presos, bem como casos de execuções sumárias e outros abusos. Esse grupo conseguiu várias vitórias no Sistema Interamericano, algumas das quais até mesmo levaram ao encarceramento dos autores das violações. 4.31 O GAJOP, em Recife, realizou trabalho similar ao grupo Conectas, baseado em São Paulo. O segundo iniciou atividades regulares de capacitação para organizações comunitárias e membros das famílias de presos. Suas equipes jurídicas realizavam cursos regulares de dois dias, para até 100 participantes, sobre como monitorar condições e práticas em uma instalação de medidas sócioeducativas para jovens. Esses cursos incluíam informações sobre os direitos dos infratores junevis e sobre como obter reparação quando tais direitos forem violados. O Conectas também apresentou numerosas petições amicus ao STF, cobrindo, entre outros assuntos, a necessidade de “federalizar” processos de violações de direitos humanos. 4.32 Outros grupos como a Pastoral Carcerária, o Rio da Paz e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa estão prestando aconselhamento e assistência judiciária direta a presos, inclusive a pessoas em prisão provisória. No estado nordestino do Maranhão, o Judiciário estimulou a formação de uma rede de voluntários que visitam presídios e prestam aos presidiários aconselhamento jurídico e assistência humanitária.207 Estes grupos também estão prestando serviços aos presidiários, como cuidados com a saúde, doação de livros para as bibliotecas dos presídios, defesa dos direitos dos presidiários para que eles possam votar, e ajuda aos egressos do sistema carcerário a se reintegrarem à sociedade. O IDDD atualmente coordena uma campanha para assegurar que pessoas sob custódia policial ou prisão provisória tenham acesso a telefones para contatar seus advogados. Encontrando uma saída 4.33 Nenhum desses programas deve ser visto como substituto para um serviço público de assistência judiciária devidamente provido de recursos, nem para a necessidade de outras reformas no sistema de justiça criminal que estão documentadas neste relatório. Ao contrário, eles devem ser vistos como parte de um pacote mais amplo de medidas que fortalece o processo de reforma. A Defensoria Pública é o órgão com a função constitucional de prestar assistência judiciária gratuita àqueles que necessitam e a International Bar Association endossa enfaticamente os repetidos apelos que têm sido feitos para que ela seja fortalecida. 4.34 Contudo, o trabalho destes diversos grupos mostra a engenhosidade criativa, ou o “jeitinho brasileiro”, com que os brasileiros estão tentando desenvolver respostas à crise atual do seu 207 Manual de boas práticas em ações para a inclusão social de presos e egressos do sistema carcerário do Maranhão, Tribunal de Justiça do Maranhão, 2009 . Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 69 sistema de justiça criminal, encontrando uma saída para contornar os diversos obstáculos existentes. O trabalho deles reflete um reconhecimento muito difundido de que a suposta dicotomia entre a necessidade de maior segurança e o respeito pelos direitos humanos é falsa. Um sistema penal e de justiça criminal que respeite os direitos humanos e as leis provavelmente será mais eficaz do que um que tolere a situação atual. Embora isto requeira maiores investimentos, os seus benefícios para a sociedade como um todo compensam, em muito, tais custos. 70 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro Fevereiro de 2010 Fevereiro de 2010 Um Em Cada CinCo: A Crise NAs Prisões e No sistemA De JustiçA CrimiNAl BrAsileiro 71