Especificidade e intersetorialidade da política de assistência social Aldaíza Sposati1 O debate sobre a especificidade, ou não, da política de assistência social não tem uma resposta universal. O âmbito de uma política social tem inserções próprias à realidade social, econômico e política em que ela é fundada ainda que, a particularidade dessa política possa ter semelhanças entre nações. A exemplo, urbanizar favelas sob o escopo da habitação, diz respeito às áreas urbanas dos países que não ofertaram condições salariais e de acessos para que o direito básico em ter uma morada digna, ou uma política fundiária equânime, demandados pelos movimentos sociais populares, tenham sido afiançados. Esta realidade possivelmente não ocorrerá na Escandinávia ou na Inglaterra ou, como mostrou o Habitat II, o conteúdo das lutas e das políticas pela terra e moradia tem recortes históricos e geográficos diversos, ainda que atuem sob tema similar. Analisar a especifidade/particularidade da política de assistência social no Brasil significa entender que estamos tratando de um objeto histórico e geograficamente situado e que, portanto, estamos tratando de uma dada relação de forças sociais e políticas que, no caso, constroem o regime brasileiro de assistência social. Quero afirmar que o âmbito de uma política social é, em grande parte, resultante do processo histórico político e, por conseqüência, das orientações que uma sociedade estabelece quanto às necessidades de reprodução social da sociedade que terão provisão pública, isto é, aquelas que transitam da responsabilidade individual e privada para a responsabilidade social e pública. O alcance dessas provisões em quantidade, qualidade, cobertura, ética, garantias afiançadas, modo de gestão e financiamento detalham o regime da política social adotada no país. O trânsito das responsabilidades do campo individual para o público/social pode se dar pela via do incremento do paternalismo ou pela conquista de direitos. No caso brasileiro essas vias não são pólos duros, e politicamente antagônicos mas, muitas vezes, imbricados e apresentando diferentes intensidades e mediações entre um e outro. A exemplo, a caridade religiosa é mais próxima ao paternalismo todavia, pode também negá-lo e 1 Professora titular da PUC/SP, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Seguridade e Assistência Social da PUC/SP, vereadora pelo Partido dos Trabalhadores na Câmara Municipal de São Paulo licenciada e Secretária Municipal de Assistência Social da Cidade de São Paulo. reivindicar o cumprimento de um direito humano fazendo transitar sua posição político-ética de um lado para outro. Entre os praticantes da caridade vamos encontrar, e ao mesmo tempo, protagonistas de ambos os pólos e múltiplos mediadores que chegam até a ser parceiros da execução de políticas públicas e da exigência democrática do cumprimento dos direitos sociais enquanto outros permanecem sob a orientação da benesse. Desencravar a especificidade/particularidade da assistência social de todo esse amálgama sócio-político é, no mais das vezes, tarefa inglória ou, até mesmo, impossível. Considero porém, que é preciso colocar este desafio face a face e com toda a objetividade possível. O que aqui me proponho – tornando claro de antemão que se trata de um exame complexo para os limites de um artigo – exige à partida um alerta sobre necessários desdobramentos analíticos, que o texto não desenvolverá. 1. o que está em discussão Um passo inicial, para tornar este debate mais claro, exige precisar sobre o quê se está discutindo e o onde se está discutindo, a assistência social. O debate sobre a especificidade da assistência social está sendo demandado pelo Ministério da Assistência Social, parte do Governo da União. Isto significa que foi inscrito – ainda que timidamente, diga-se de passagem – na gestão pública brasileira e para todo o território nacional, uma nova delegação político-programática no âmbito das políticas sociais. Esta nova consolidação exige ter, estrategicamente claro, o âmbito das necessidades sociais da população brasileira que deverão ser problematizadas, gestadas e providas por esse órgão nacional e pelo sistema único descentralizado e participativo da assistência social. Não estamos a frente de um objeto de estudo mas, diante da necessidade política de construção democrática da responsabilidade governamental sobre a assistência social como política de Estado. Estamos tratando de uma mediação estatal na relação de classes que tem por objetivo construir novos parâmetros e alcances na luta pela efetivação de direitos sociais. Temos a frente a possibilidade de fazer avançar em alguns aspectos um processo constituinte inconcluso. Estamos no campo da dívida social brasileira, das exclusões sociais e entendemos que os serviços da assistência social são importantes: quer para suprir demandas da reprodução social de segmentos sociais, ainda que invisíveis dentre os brasileiros; quer para a desconstrução/reconstrução da sociabilidade cotidiana de várias camadas da população sob uma nova relação de igualdade/eqüidade de direitos perante o Estado brasileiro. Estamos ainda, face a face, com a hipótese jurídico-política igualitária da possibilidade de ampliar o alcance de cidadania, ainda que numa sociedade de desigualdade. Isto é, diante de uma contradição própria da dinâmica conflitiva de uma sociedade de classes que põe e repõe o processo de identidade e reconhecimento de todos os brasileiros, e de cada um, face ao Estado e à sociedade. Entendo esta situação como extremamente nova, do ponto de vista político, e capaz de imprimir um novo rumo à gestão da assistência social como política social pública. Isto requer algumas pontuações sobre o “estado das artes” do debate sobre o conteúdo, especificidade, particularidade, âmbito da política pública de assistência social. Talvez alguns estranhem o termo nova situação, já que a LOAS faz 10 anos neste 07 de dezembro de 2003. É preciso dizer porém que, pela primeira vez na história brasileira, há um Ministério de Assistência Social. O novo é a perspectiva de alcançarmos o conteúdo de uma Política de Estado ao invés de fragmentar respostas sociais em múltiplas ações e intenções desconexas, como tem sido nestes anos desenvolvendo tão só Políticas e Práticas de Governos. A inclusão do campo particular da assistência social, no âmbito da seguridade social proposto pela Constituição de 1988, não encontrou interlocutores e interlocuções estruturadas e organizadas na academia, na sociedade civil e nos movimentos sociais. Diversa situação ocorreu, a exemplo, no âmbito da Saúde que partiu de uma proposta estratégica (acadêmica, política, de gestão e de poder) construída nacionalmente (e com apoio internacional da Conferência de Alma Ata). A inclusão, em 1988, da assistência social como campo próprio na seguridade social, decorreu mais da decisão política do grupo de “transição democrática” do final da ditadura militar em tratar a gestão da previdência social expurgada do que não era stricto sensu seguro social. A constituição político-institucional da assistência social na seguridade social se deu pela negativa, isto é, passou a ser do campo de assistência social o que não era da previdência por não ser benefício decorrente de contribuições prévias. Por conseqüência é preciso ter presente que a instalação da área da assistência social como política de seguridade social não resultou de um processo político pela ampliação do pacto social brasileiro. Não ficou claro a partida que esta decisão geraria novas responsabilidades públicas e sociais para com a população que não alcança o seguro social por não ter relação formal de trabalho. Ou ainda, que se tratava de uma decisão política de alargamento da proteção social dos brasileiros, configurando-se como proteção à vida e à cidadania, além do seguro social como partes componentes da seguridade social. A hegemonia do pensamento da Seguridade Social se deu pela Previdência Social, isto é, pelo seguro e não pela cidadania ou pela justiça social. O próprio Sistema Único de Saúde resultou da combinação das ações de saúde do antigo INAMPS com a Política Nacional de Saúde. A assistência social, então, foi configurada mais como um campo de “heranças institucionais” que transformou a Renda Mensal Vitalícia do campo da Previdência para o da Assistência Social. Afirmo com isto que nestes 10 anos ainda não foi consolidado o campo da responsabilidade pública dessa política, ainda que, várias iniciativas foram tomadas nessa direção. Seu conteúdo foi traduzido em apenas dois artigos constitucionais (artigo 203 e 204), cuja exegese não está polemizada no campo do direito e da justiça de modo a configurar claramente os direitos e as obrigações que produz. Por decorrência, é mais usual caracterizar a assistência social como “dever do Estado e direito da população”, sem tornar claro, e específico, no que consistem tais deveres ou tais direitos. A própria Lei Orgânica da Assistência Social deixa a desejar nessa construção e detalhamento. Na academia o objeto de estudo, assistência social, constituiu-se na metade da década de oitenta sob um conflituoso campo de debate. O livro “Assistência na Trajetória das Políticas Sociais Brasileiras, uma questão em análise”, apresentado em 1985, por professores da PUC/SP (Sposati, Yasbek, Falcão e Bonetti) inicia esse processo. Até então, a assistência social era símbolo de uma ação a ser negada por significar tutela, favor, voluntarismo, clientelismo, assistencialismo, ação pontual e nunca campo de estudo e muito menos política social. É freqüente a concepção de que a assistência é contraposição à política social e não uma política social. O Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, resolveu esta questão caracterizando o que chama de políticas básicas – entre elas educação e saúde – e políticas de atendimento na condição de ação complementar. Estou afirmando que o processo de construção do campo da assistência social, como política social, tem sido historicamente relegado ou, no mínimo, retardado por exigência da necessária ruptura com o conservadorismo, que sempre demarcou o âmbito e o modo da gestão da assistência social no caso brasileiro. Há uma relutância em afirmá-la em campo de conquista de direitos. Primeiro, porque nela ainda estão presentes forças conservadoras que a mantém sob o jugo do clientelismo. Segundo, pelas teses críticas à sociedade de mercado onde afirmar a assistência social como política significaria – mascarar contradições e conflitos de classes da sociedade brasileira sob uma estratégia de consenso e subalternização – favorecer a acumulação do capital. Tratar-se-ia então de ingenuidade ou politicismo pensá-la com política e esquecer as determinações econômicas do modo de produção capitalista. Ambas pontuações recorrem ao determinismo e se estendem a todas as políticas sociais, isto é, não só para com a assistência social. Tal compreensão termina por negar o próprio movimento histórico contraditório das classes sociais. É certo que há um caráter ideológico nas relações entre Estado-Sociedade-Mercado que tende a ser hegemonizada pelo capital, mas, é certo também, que essas relações são um espaço contraditório onde ocorre a luta e a conquista de direitos sociais pelos trabalhadores formais e informais. Apontar a perspectiva de repolitizar a esfera social pública e nela tensionar o alcance do status de cidadão aos excluídos não significa obscurecer os conflitos contidos nessa relação. Concretizar a igualdade, própria de cidadania, conflita com a sociedade de desigualdades, o que põe luzes, nas discriminações/apartações próprias do processo de exclusão/inclusão social ali contido. Este processo tensiona as regulações postas à partida na esfera pública e exige uma nova institucionalidade democrática para o Estado. Este é um dos campos fundamentais de assentamento da política de assistência social como dever do Estado e direito do cidadão. Entre o passado conservador e os “prenúncios críticos” de um futuro sem futuro, a necessária ruptura paradigmática da assistência social não vem catalisando forças como o foi, por exemplo, a protagonizada pela Reforma Sanitária na Saúde, que rompe com o modelo da medicalização e constrói na luta, um novo espaço para o direito a saúde, enquanto o alcance da quantidade e qualidade de vida a todos. O novo paradigma capaz de confrontar com o senso comum no qual a assistência social é puro e mero “assistencialismo”, não está unificado entre os que lutam por essa ruptura. A estratégia institucional do Governo FHC em dissolver a antiga LBA, e com ela todo acervo/memória/conhecimentos do que era, até então, a política nacional de assistência social e a constituição em seu lugar da Comunidade Solidária, contribuiu largamente para dificultar e impedir o avanço do paradigma da assistência social sob a égide do avanço dos direitos sociais. A proposta de FHC foi a de substituir a regulação estatal estabelecendo “nova relação solidária” com a sociedade. Isto é, optou pelo caminho da subsidiariedade encolhendo, o que deveria ter sido desde o início, a responsabilidade pública. Sem dúvida foi uma opção neoliberal que fez retroceder ao invés de avançar o pacto pelos direitos sociais. Pior ainda, colocou à frente do processo pós-ditadura militar, voltado para democratização da gestão pública estatal, um simbolismo que tudo tinha de continuidade com o conservadorismo: a primeira dama. A gestão FHC foi na assistência social um mix de conservadorismo e modernidade neoliberal, que impediu o desenvolvimento da cultura política de política social e de direitos sociais para a assistência social. Sendo generosa, diria que quase nada, é exemplar na gestão federal da assistência social. De fato, ela ainda não se traduz pela aplicação de um novo paradigma. O que pode existir de novo nessa direção tem vindo sem dúvida, da força inovadora de municípios que desenvolvem ações participativas com forças sociais locais. Todavia, estas experiências podem se transformar em meras ocorrências caso não se consiga delas extrair os elementos para consolidar a assistência social como política social pública. Considero que estabelecer a particularidade/especificidade dessa política é condição nodal para a soldar o paradigma do direito na assistência social. 2. concepções inespecíficas da política de assistência social É importante estabelecer que estamos aqui debatendo sobre o âmbito de uma política pública. Não se pode confundir a política pública de assistência social com a prática de assistentes sociais ou com a presença do “assistencial” nas políticas sociais. Dito ainda de outro modo, o profissional assistente social pratica o Serviço Social em múltiplas áreas sociais e não necessariamente no âmbito da política pública de assistência social. Fazer assistência social é, via de regra, confundido com assistencialismo e voluntarismo. O assistente social faz Serviço Social e, pode fazer Serviço Social no âmbito da política pública de assistência social, da saúde, da habitação etc., desde que opere com provisões sociais e direitos sociais. A política pública de assistência social não é o Serviço Social como disciplina profissional e sim, um conjunto de responsabilidades públicas do Estado que deverá exerce-los de forma descentralizada, participativa e afiançadora de direitos. A constituição da responsabilidade pública pelas provisões sociais é uma construção do século XX, quer pelo ideário da social-democracia, quer pela regulação keynesiana/beveridgiana. Antes disto o Estado assumia circunstancialmente uma ou outra forma de atenção sob a configuração de um Estado Assistencial, isto é, de forma residual e meritocrática, como diz Titmuss, pelo qual passa a responder por uma atenção social em caráter concorrencial ao mercado. Dentre os defensores de que a assistência social não tem um conteúdo específico/particular identificam-se dois grandes blocos. Um primeiro bloco justifica a inespecificidade, tendo por base uma dada divisão de trabalho entre as políticas sociais que se fundamentam em um pacto liberal, onde o Estado deve combinar as provisões das políticas sociais com o consumo no Mercado. O alcance da política social deve ter um limite que não interfira no consumo. Ultrapassá-lo seria sob tal modo de pensar, uma concessão a ser justificada pelo estado de precariedade do demandatário. Sob esse conceito haveria no processo de gestão entre as políticas sociais, um mecanismo institucional regulador que mediria meritocraticamente, o avanço da cobertura de uma dada política social. Este mecanismo institucional é o chamado “mecanismo assistencial” que já dito no livro de 1985 – “não cabe reduzir a assistência (social) a um mecanismo voltado para o emergencial, ou ainda, não cabe reduzir as ações a paliativos, visto seu caráter superficial e de urgência”. (1985:58) Os que seguem esta compreensão deslocam o pacto social do âmbito das relações societárias para inscrevê-lo como um pacto de gestão interna corporis dos órgãos estatais. Diria que é um golpe na democratização da assistência social que faz emergir a tecnocracia, ou a tradicional via prussiana, como paradigma dessa regulação. Num segundo bloco dos defensores da inespecificidade da assistência social, ocorre um certo “up grade”, isto é, rompem com o residualismo institucional do primeiro bloco e consideram a assistência social como responsável pelo pobre, pela pobreza ou por àquele que não tem capacidade de ser consumidor. Ela é compensatória ao mercado pois geraria acessos através do fundo público e não da circulação de mercadorias stricto sensu. Neste bloco estão os que operam com o paradigma da cidadania invertida, isto é, primeiro é preciso mostrar o quanto ganha ou (o não ter, para depois ser) ser submetido a um teste dos meios para ter acesso a um bem ou serviço. A tendência deste paradigma é o focalismo. Assim, a assistência social diversamente das demais políticas sociais, não operaria sob o referencial da necessidade, mas sim com necessitados sociais comumente estigmatizados como carentes. • a assistência social como processante de outras políticas sociais, isto é, sem conteúdo próprio A assistência social sem conteúdo específico pode ser “barriga de aluguel” para gestação de uma política social ou mesmo, parte do sistema classificatório das ações das diversas políticas sociais. No caso, algumas políticas sociais ao buscar combinar universalismo com meritocracia denominam como de âmbito da assistência social o acesso a alguns serviços seletivos que produz. A exemplo, a presença do leite ou o medicamento na saúde; ou a presença do acesso ao material escolar ou uniformes na educação, em ambos os casos, direcionados para crianças ditas “mais carentes”, isto é, acessos que se dão através de uma seletividade são justificados como não sendo ações de saúde, mas sim de assistência social. É preciso dizer que estas ações só serão tipificadas com o de assistência social sob um paradigma conservador, que combina mais com aquele que opera a medicalização da saúde, mas não, em absoluto, com o paradigma da política pública de assistência social como direito social. Múltiplas ações sociais governamentais têm sua gênese no âmbito da assistência social. Este fato histórico-político, explicado pela persistência conservadora de um liberalismo que cria travas para a extensão da responsabilidade pública, deu uma conotação à assistência social como processante de políticas sociais. Isto equivale dizer que ela seria afiançadora de mérito, avalizadora pela técnica da condição coletiva de necessitado, ou algo similar. Isto portanto, opera sob o paradigma de tecnocracia e não pelo da democracia. Diversas dessas ações governamentais, não configuram políticas sociais duradouras, isto é, são políticas de governo de duração efêmera e não, políticas de Estado, que alcançam direitos reclamáveis. Estas iniciativas circunstanciais no mais das vezes se instalaram nas burocracias governamentais da assistência social, já que estas não operavam sob a égide do direito na consolidação da responsabilidade estatal. A exemplo, a ação em favelas, o acesso a água, a luz foi iniciado sob a área de assistência embora fossem aquisições habitacionais. A mediação da burocracia da assistência social era atestadora do mérito já que estes segmentos da população não tinham o reconhecimento de cidadãos portadores de direitos sociais. Este conjunto de situações caracteriza uma primeira concepção inespecífica da assistência social. A política de assistência social entendida como processante de outras políticas sociais, configura uma hierarquia entre as políticas sociais e atribui à assistência social um lugar de mediação e supletivo. No caso ela teria a capacidade nucleadora de necessidades dos excluídos das “políticas básicas”. Outra vertente inversa desta tese é a que estabelece como conteúdo da assistência social todas as situações não incorporadas pelos padrões técnicos normativos de cada política social. Ela cuidaria do expurgo de cada política social. Caso as “políticas básicas” funcionem, não teria necessidade da assistência social existir como política e só como ação prática. • a política de assistência social não tem conteúdo específico, pois constitui-se na mediação institucional que opera o trânsito do usuário para outra política social. Este é o conteúdo, ao mesmo tempo, de intersetorialidade e de travessia. Aqui a assistência social é “agência de passaporte” ou “agência de despachante” pois, em si não resolve, só agencia os serviços dos outros. Nessa concepção inespecífica, a assistência social não teria provisões próprias, mas sim operaria as intersetorialidades de encaminhamento. Ela, no caso, não seria política social e sim ação aglutinadora, cujo objetivo é operar e construir a intersetorialidade entre as políticas sociais. Não há dúvida que a assistência social opera na dinâmica da extensão da agenda pública para novos direitos sociais. Este processo tensiona outras áreas mas, esta tensão não é a política de assistência social. Isto significaria dizer que ela não opera provisões mas só processos. Entendo que aqui se confunde o âmbito do Serviço Social, disciplina profissional que trabalha com processos sociais, com o âmbito de uma política pública cujo alcance deve produzir aquisições de bens e serviços e meios, além daqueles procedentes de processos sociais. Do ponto de vista da intersetorialidade, as políticas sociais se complementam: o aluno assiste melhor à aula se estiver alimentado, se sua casa tiver luz e água, se usar de meio de transporte para chegar a escola, se sua saúde estiver cuidada e tomar os remédios necessários etc. Todas as políticas sociais devem operar a referência e contra- referência interna e externa. Este processo não é de exclusividade de uma dada política social mas de todas aquelas que possuem a leitura integral e integradora de necessidades sociais. A intersetorialidade é ao mesmo tempo, objeto e objetivo das políticas sociais e como tal o é também, da assistência social. • a política de assistência social é genérica nas atenções e específica na clientela. Esta concepção coloca a assistência social com o papel primordial de operadora da regulação da política econômica concentradora de renda. No caso a assistência social como reguladora da pobreza – e dentro dos marcos da própria pobreza, isto é, sem redistributividade – opera com a pobreza absoluta e constrói um lugar secundário ao mais pobre sob o manto da meritocracia de uma forma de assistência social especializada em necessitados. Esta concepção é uma armadilha para o campo dos direitos sociais e enfrentamento da exclusão social. Ela é estigmatizadora. Ao invés de operar para que cada uma das políticas sociais atenda às necessidades reais dos brasileiros, seus usuários represam necessidades para fora de cada política social. Neste sentido ela se assemelha a alternativa que afirma ser o leite, o remédio, a prótese, provisões da assistência social e não da área da saúde; ou então que a cesta básica seria da assistência social e não da segurança alimentar; o material escolar seria da assistência social e não da educação. As políticas sociais devem assegurar as condições necessárias para que os usuários possam utilizá-las. De outro modo, elas se transformam em conselheiras/indutoras do consumo no mercado. O médico dirá eu cuido de sua saúde desde que você compre remédios na farmácia. O professor dirá eu capacito suas habilidades desde que você compre o material escolar na “papelaria Tico-Tico”. Seriam assim estimulados ao consumo privado pela ação e pelos agentes públicos. Este modo de entender “o campo inespecífico” da assistência social dissemina e aparta segmentos da população. Por conseqüência, cria um aparato institucional apartador de uma faixa da população, o que é um grande equívoco negador da universalidade da cidadania. 3. por uma concepção específica ou de particularidade da assistência social A defesa da especificidade/particularidade da assistência social supõe assentar bases na construção de uma nova cultura política. Isto é, supõe agir na contramão ao que está dado no campo público. Considero que no Brasil o âmbito particular da política de assistência social traz inflexões ao entendimento internacional onde esta área é predominantemente entendida como aquela que opera as políticas de transferência de renda ou aquele que produz apoio individual a cada usuário. A construção constitucional da assistência social como seguridade social gerida por um sistema único descentralizado e participativo de decisão e controle social é particularidade brasileira para a gestão da assistência social. Esta particularidade precisa ser constituída a pleno em um novo paradigma. Para isto, detalho alguns pilares desse paradigma. 3.1. assistência social como política de proteção social No campo da seguridade social a assistência social é proteção, portanto, deve operar preventivamente e protetivamente nas situações de risco social. Ela deve prover proteção social básica e especial, isto é, a assistência social estuda o processo de proteção social, de previdência e da saúde. Ela não se limita ao domicílio pois chega até aos que estão nas ruas, ela não se limita ao legal ou ao formal, não restringe, por exemplo, a atenção ao transgressor. Ela é extensiva. Os riscos sociais não advêm de situações físico, psico, biológicas como a saúde, mas sim se instalam no campo relacional da vida humana. A assistência social está no campo societário e como tal são os riscos sociais advindos dos processos de convívio, de (in)sustentabilidade de vínculos sociais que se colocam sob sua responsabilidade. São algumas das necessidades humanas que devem ser providas pela assistência social, tendo presente que, em uma sociedade de mercado e de profundas desigualdades sócio-econômicas e políticas, tais necessidades são agravadas pela miserabilidade da população. A assistência social como política pública deve ofertar a provisão de necessidades fora do mercado, isto é, sustentadas pelo orçamento público na qualidade de garantia social. Para tanto aqui se entende a assistência social como: • política de garantias de direitos de prevenção e proteção social através de serviços, benefícios, programas, projetos, monitoramento e trabalho social que: • previne/reduz situações de risco social e pessoal; • protege pessoas e famílias vulneráveis e vitimizadas independente de idade, sexo, raça, etnia, renda; • cria medidas e possibilidades de ressocialização, reinserção e inclusão social; • monitora exclusões, vulnerabilidades e riscos sociais da população. Portanto, a organização da assistência social supõe: • uma rede de proteção social básica e especial fundada na cidadania; • a provisão de um conjunto de seguranças sociais a todos; • um sistema de monitoramento de riscos e de defesa de direitos. 3.2. a rede de proteção social • A rede de proteção social da assistência social tem por primeiro objetivo a proteção ao ciclo de vida, isto é, o dimensionamento de apoios às fragilidades dos diversos momentos da vida humana como também de apoios aos impactos dos eventos humanos que provocam rupturas e vulnerabilidades. Assim, a assistência social tem especializações por segmentos etários, o que a coloca em diálogo com os direitos de crianças, adolescentes, jovens e idosos. Opera quer sob a matriz do direito ao desenvolvimento como do direito da experiência humana. • Outro eixo protetivo decorre do direito à eqüidade, isto é, a heterogeneidade e à diferença sem discriminação e apartações. No caso, a ruptura com as discriminações para com mulheres, índios, afrodescendente, são centrais. • Um terceiro eixo protetivo se dirige à preservação da dignidade humana, isto é, na proteção especial contra as formas predatórias da dignidade e cidadania em qualquer momento da vida e que causam privação, vitimização, violência e, até mesmo, o extermínio. As pessoas em desvantagens pessoais, em abandono ou em deficiência, são passíveis vítimas dessa predação, além de crianças, jovens vítimas da violência sexual, drogadição, ameaças de morte. • Um quarto eixo protetivo está no enfrentamento das fragilidades dos arranjos familiares. Aqui a ampliação das condições de equilíbrio e resiliência do arranjo-familiar é fundamental na reconstituição do tecido social e no reforço do núcleo afetivo de referência de cada pessoa. O paradigma de proteção social básica e especial rompe com a noção abstrata dos cidadãos como massa abstrata e se direciona para um conceito do real que trabalha a partir de potencialidades, talentos, desejos, capacidades de cada um e dos grupos socais. • Um quinto eixo é o do monitoramento e de defesa. Trata-se do vigiar e defender e não do vigiar e punir. É preciso desenvolver políticas de favorecimento ao alcance de direitos, uma ação pró-ativa que instale defensorias no âmbito sócio-assistencial. A proteção social na assistência social inscreve-se, portanto, no campo de riscos e vulnerabilidades sociais que, além de provisões materiais, deve afiançar meios para o reforço da auto-estima, autonomia, inserção social, ampliação da resiliência aos conflitos, estímulo à participação, eqüidade, protagonismo, emancipação, inclusão social e conquista de cidadania. Todo este compromisso com a proteção social aos riscos e vulnerabilidades sociais se fundamenta na expansão de um padrão societário de civilidade que afiança um padrão básico de vida e respostas dignas a determinadas necessidades sociais. No caso, como diz Gough, aqui se coloca o direito à satisfação de necessidades que são tanto materiais como relacionais. Propõe ainda Gough que a preservação da vida humana e o desenvolvimento da autonomia sejam obrigações básicas da vida humana2. Responder à satisfação mínima de necessidades supõe, para o autor, eliminar o sofrimento brutal e capacitar as pessoas a sobreviverem. A esta preservação humana deve se somar o desenvolvimento da autonomia para afiançar condições de liberdade e opção. 3.3. assistência social como provedora de seguranças sociais A assistência social como seguridade social deve prover as seguranças de acolhida, convívio, autonomia, eqüidade e travessia. Esta construção que desenvolvo desde 1995, a partir do Núcleo de Seguridade e Assistência Social da PUC/SP, vem sendo debatida e experimentada no processo de gestão tendo demonstrado conter qualidade organizativa e estimuladora da definição das aquisições para os usuários dos serviços do âmbito da assistência social. Para estabelecer quais seriam as necessidades no campo da assistência social, já que a LOAS não as explicitou de modo cabal, é preciso desenvolver uma outra forma de análise que inclua o conceito de risco social. É importante ressaltar que no Brasil temos frágil noção de risco social. As culturas liberal e neoliberal entendem o risco como uma questão de preocupação pessoal e individual. As incertezas da vida, de acordo com o pensamento liberal, devem ser enfrentadas e respondidas por cada um, de acordo com as suas possibilidades. Frase esta em rumo contrário à de Marx: a cada um de acordo com suas necessidades. É preciso o compromisso coletivo da sociedade com os riscos sociais da população. A exemplo, se pergunta: quando é que uma criança está vivendo um risco social? Certamente não é só quando ela não tem o que comer, mas também quando é violentada pelos seus pais; quando não consegue uma vaga na escola; quando não consegue desenvolver as suas potencialidades e tem que trabalhar até mesmo desde os quatro anos. A noção de risco não implica somente a iminência imediata de 2 GOUGH, Ian e Doyal – O direito à satisfação das necessidades. IN Revista Lua Nova, CEDECA. São Paulo, 1991. pág. 97-121. um perigo, mas ela quer dizer também uma possibilidade de, num futuro próximo, ocorrer uma perda de qualidade de vida pela ausência de uma ação preventiva. A ação preventiva é irmã siamesa do risco, pois não se trata de tão só minorar o risco imediatamente, mas de criar prevenções para que este se reduza significativamente ou deixe de existir. Não se rompe o circuito de “sociedade de risco” na qual o trabalhador é que deve ser o provedor da superação do risco. “A segurança é uma exigência antropológica de todo indivíduo, massua satisfação não pode ser resolvida exclusivamente no âmbito individual. É também uma necessidade da sociedade que se assegure em determinada medida a ordem social e se garanta uma ordem segura a todos seus membros. As políticas sociais representam um dos instrumentos especializados para cumprir essa função.” (Villalobos3). É preciso um conjunto de políticas para garantir a oferta e procura de emprego e salário ou remuneração com condições de um padrão digno. A multiplicidade de situações exige a garantia de um conjunto de seguranças a se contrapor às incertezas sociais. Não se pode reduzir a assistência social a prover situações de destituição plena, como população de rua, trabalho/prostituição infantil, analfabetismo, crianças de rua, prostituição adulta, entre outras ainda que sejam situações limiares a serem superadas para um novo patamar. É possível e necessária uma política ativa de assistência social que resignifique a vida, a dignidade, a resistência, o empowerment dos ainda estruturalmente excluídos. A auto-estima, a capacidade de decidir e pertencer ao lado da extensão da proteção social aos riscos na sociedade de violência precisam ser ativados, ainda que pareça uma luta de David contra Golias nesta sociedade de mercado. A assistência social4 é uma das ferramentas para ativar um novo contrato social na direção de inclusão dos excluídos. A população tem clara esta situação e reclama pelo direito a um “empurrão”. Isto ficou muito presente no diagnóstico participativo que realizamos com a população de quatro favelas em Santo André. Este “empurrão” é uma condição de força para enfrentar o forte movimento que os exclui. São necessárias ações para reduzir o sofrimento 3 Villalobos, Verônica. “O Estado de Bem Estar Social na América Latina: necessidade de redefinição. In Pobreza e Política Social”. Cadernos Adenawer. 2000, n.º1. Fundação Conrad Adenawer. São Paulo. 2000: 58). 4 No detalhamento das seguranças sociais é aqui reproduzido trechos de textos de minha própria autoria de 1995, 1999, 2000, onde já tratei da matéria. humano em ser excluído, propulsão de forças para restaurar a auto-estima face à discriminação. Reclamam da necessária humildade dos agentes institucionais que os tratam como seres desprovidos da capacidade de saber o que desejam ou do que necessitam. A pessoa que recorre, a exemplo, a um hospital não busca só atendimento médico oportuno. O tratamento que recebe deve reconhecer sua dignidade humana, sua singularidade individual e sua identidade social. É preciso que o cidadão se sinta inserido em um contexto de confiança e cooperação que dê sentido a sua vida cotidiana. As pessoas precisam ser consideradas como capazes inclusive de escolhas para seus destinos, ainda que suas chances precisem ser construídas. É preciso superar a visão conservadora e liberal de que a oportunidade é um corretivo. É preciso ter claro que face a esta perversa sociedade de mercado, algumas pessoas não terão condições de superar a força dos mecanismos de exclusão, necessitando de apoio contínuo, do suporte familiar ou mesmo do mercado de trabalho subsidiado. É uma inverdade entender que nestes casos as pessoas se sentirão culturalmente separadas do resto da sociedade. A assistência social não pode ser vista ou operada como a “caridade legal”. Por isso no Brasil ela não se reduz a benefícios, mas deve incluir serviços, programas, projetos. O Estado como responsável pela efetivação dos direitos do cidadão deve ser ao mesmo tempo gestor estratégico, fornecedor de recursos, regulador e produtor direto de serviços e estimulador da inclusão social na sociedade. O neoliberalismo e as novas formas de fascismo social ampliaram os riscos e a ausência de garantias de estabilização de expectativas. Temos vivido, como diz Boaventura Santos, um colapso de expectativas que certamente agrava, ainda mais, a situação da população que vive em territórios onde o Estado não aparece. São as comunidades sujeitas às regras das máfias e dos bandos. A noção de risco social exige que a assistência social estabeleça quais as situações que tornam os cidadãos mais sujeitados à vivência de um risco. Portanto, definir o conteúdo próprio da política de assistência social exige estabelecer quais as vulnerabilidades sociais que devem ser cobertas por uma política de proteção social ou de seguridade social. Uma política de proteção social compõe o conjunto de direitos de civilização de uma sociedade e/ou o elenco das manifestações e das decisões de solidariedade de uma sociedade para com todos os seus membros. Ela é uma política estabelecida para a preservação, a segurança e a dignidade de todos os cidadãos. Considero que a assistência social como política de seguridade social precisa afiançar a cobertura de necessidades do cidadão e da família, enquanto núcleo básico do processo de reprodução social. Esta cobertura deve assegurar a redução/eliminação de vulnerabilidades que fragilizam a resistência do cidadão e da família ao processo de exclusão. Portanto, cabe à assistência social ampliar a segurança das condições de vida através da: -a segurança de acolhida; -a segurança do convívio social; -a segurança de autonomia/rendimento; -a segurança da equidade; -a segurança da travessia; • segurança da acolhida A segurança da acolhida não se reduz à população de rua como não é também uma política habitacional ainda que vá ao encontro dessa provisão. Sabemos que uma das regras perversas da sociedade moderna, embora toda a sua evolução tecnológica, é dela se constituir numa sociedade do abandono. No caso, a segurança de acolhida, supõe construir a possibilidade de cobertura a várias vulnerabilidades, como por exemplo: pela invalidez, pela deficiência, pela velhice, pela maternidade, pela morte, por um acidente, por ser criança, pela violência, pela doença, pela ausência de referências ou parentesco, entre outras situações. Em cada uma destas questões é necessário propor qual será a cobertura de acolhida. Não se trata de pensar quantos orfanatos ou quantos asilos vamos instalar, até porque este é um tipo de proposta que soluciona a questão pela institucionalização do cidadão e esta torna pior o remédio do que o próprio mal. No caso, a questão é se pensar quais seriam as formas de cobertura a ter em cada uma destas situações, como a garantia de que as pessoas possam ser acolhidas condignamente e ter suas vidas reconstruídas para a autonomia. A segurança de acolhida incorpora, por exemplo, a oferta de condições para a mulher ou para a criança vítimas de violência. Quer dizer, trata-se de construir espaços de referência que dêem a liberdade da pessoa poder a eles recorrer, reduzindo o seu sofrimento e garantindo seu padrão de dignidade e cidadania, evitando que chegue a um último grau de deterioração da sua condição humana de vida. O processo de desinstitucionalização, por exemplo de cidadãos com problemas de saúde mental, embora correto como caminho, exige como contraponto políticas de apoio às famílias para poder manter consigo seus membros portadores de vulnerabilidades. É preciso considerar ainda um programa de acolhida para situações de risco, como violência familiar, acidentes, incêndios, desabamentos, abandonos, entre outras. O objetivo desta política de acolhida, é o de prover uma habitação substituta, apoio e referência para pessoas, independente da faixa etária na condição de abandono; impedimento de permanecer na moradia habitual por acidente, risco ou presença de violência, principalmente, crianças, adolescentes, mulheres e a terceira idade; desabrigados face às intempéries, principalmente no período de inverno; crianças ou pessoas da terceira idade sem apoio familiar; famílias removidas para liberação de áreas para instalação de programas de melhoramentos vários, urbanos e habitacionais, pessoas que transitam pelas cidades em busca ou realização de tratamento médico, ou os “trecheiros urbanos”, etc. Cabe à assistência social desenvolver a política de acolhimento que inclui, além do provimento de hospedagem, a produção de serviços de recuperação, reabilitação e retorno à normalidade do habitar. Não se trata de substituição da oferta de habitações, mas da oferta de condições que impeçam as pessoas de não ter referência, endereço, paradeiro e localização, além, é claro, do próprio abrigo. • segurança de convívio A segurança da vivência familiar e a segurança do convívio social são necessidades a serem preenchidas pela política de assistência social. Nós sabemos, por exemplo, o quanto as práticas em relação à criança, ao idoso, à população de rua, mesmo às mulheres, às famílias, supõem políticas de incentivo e de criação de recursos como centros de convivência onde as pessoas com situações comuns ou diversificadas possam criar laços, encontrar saídas para sua situação de vida e resguardo para os riscos que têm pela frente. Isto supõe a não aceitação de situações de reclusão, de situações de perda das relações, no caso para com familiares e a garantia das relações com os parceiros. A inexistência de apoio, orientação para lidar com as graves questões familiares na educação dos filhos, principalmente quando os pais trabalham fora de casa, o que ocorre em grande número de casos, é extremamente incidente. O padrão de sociabilidade precisa ser posto em questão, detectando as formas de comunicação em que se pauta. No caso a convivenciabilidade põe em questão o grau de tolerância/intolerância da sociedade e a capacidade de, através do convívio, agir e reagir aos tratamentos subalternizadores Não há uma oferta significativa de oportunidades de encontro e desenvolvimento para as crianças, adolescentes, mulheres, negros, idosos, etc. A expansão de centros de convivência, como locus de encontro e decisão coletiva sobre a vida e a qualificação do viver, são fundamentais no confronto à sociedade excludente. • segurança de rendimento e de autonomia O programa de renda mínima, que tem sido em muitos países um apoio à questão do emprego, no Brasil vem ganhando nítido contorno de apoio ao processo educacional das crianças. Com a inexistência de uma digna política de salário-família, a maioria dos projetos de lei em curso, bem como as experiências já implantadas, têm vinculado o acesso ao benefício desde que a família tenha filhos, e na maioria das propostas, que estejam em idade escolar. Há que se estabelecer alguns padrões de garantias básicas à família, pois sua inexistência fez até com que algumas propostas se configurem como esmolas, que transferem 10 a 20 reais mensais para uma família. Assim era o Programa Bolsa-Escola do Governo Federal que transferia R$ 15 (quinze reais) por criança hoje já rencaminhado para o Bolsa-Família com o valor do benefício mais alargado. Infelizmente, o custeio dos mínimos de cidadania é pouco debatido e estabelecido. Por isso considero que até mesmo a Previdência Social deva rever o valor insignificante do salário-família como benefício de acesso universal a toda criança cujo salário dos pais é reduzido. A renda mínima como política de seguridade social deve operar como um mecanismo de equidade no apoio para dar ao cidadão, a família condições de superar uma dada vulnerabilidade. Assim seu caráter não é o de ser apoio de educação ou de uma política social específica, embora esta alternativa até possa ter sua eficiência. O debate sobre o tema do qual participei no I Fórum Mundial de Porto Alegre foi elucidador a respeito5. A preocupação com a precariedade salarial, a pobreza, a miséria da população e a incidência de crianças nas ruas e em risco social tem sugerido no Brasil a introdução de políticas de reforço à família para educar seus filhos. Considero importante a possibilidade deste apoio, todavia chamo a atenção de que do ponto de vista da seguridade social, os municípios estão suprindo a precariedade do salário família. A segurança de rendimentos não é uma compensação do valor do salário-mínimo inadequado, mas a garantia de que todos tenham uma forma monetária de garantir sua sobrevivência, independentemente de suaslimitações para o trabalho ou do desemprego. É o caso de portadores de 5 Vide: Sposati,A. – A Inclusão Social e o Programa de Renda Mínima IN Revista Serviço Social e Sociedade, n.º 66, Cortez Ed. Julho/2001: 76/90. deficiência, da criança em abandono, idosos, desempregados, famílias numerosas, famílias desprovidas de condições básicas para sua reprodução social em padrão digno e cidadão. A LOAS propõe a renda mínima ao idoso e ao portador de deficiência, todavia sua efetivação se dá sob o critério de miserabilidade, já que a vincula ao per capita familiar de 1/4 do salário- mínimo. • segurança de equidade O programa de seguridade social de vários países do primeiro mundo mantém apoio financeiro às famílias com maior número de filhos. Para além da quantidade, a questão da idade da criança, o fato, a exemplo, de ser portadora de necessidades especiais pode e deve gerar apoios específicos à família para educar e manter seus filhos. Outras questões a se levar em conta são os programas de discriminação positiva, isto é, de apoio direcionado às famílias nas quais a mulher é chefe ou arrimo. Trata-se da utilização dos indicadores de risco para crianças de 0 a 6 anos, construídos pela UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância, de modo a constituir programas para a criança que vive em lares sem infra-estrutura de saneamento básico, com pais não alfabetizados e, principalmente, quando a mulher é a responsável familiar. Pensar o apoio à família é levar em conta as condições objetivas para a reprodução social, o que implica em avaliar a oferta concreta do meio ambiente onde se localiza sua moradia. A oferta de serviços nas cidades é discriminatória, de acordo com as condições econômicas e o local de assentamento de moradia. • segurança de travessia A idéia de travessia é a de proporcionar um conjunto de condições que juntamente com a autonomia constrói capacitações básicas para que o cidadão possa obter requisitos básicos, ou ter potencializada sua capacidade, seu empowerment para confrontar-se com as exigências que lhe são feitas. Aqui são múltiplos atributos desde o conhecimento de leis, o crédito popular, as garantias habitacionais, o acesso aos direitos das minorias que se põe como objeto de serviços, programas e projetos de assistência social. • as ofertas específicas da assistência social O sistema único da assistência social deve incluir não só a concepção e especificidade/particularidade da assistência social como o conjunto das ofertas dessa política social. Não está estabelecido nestes 10 anos os princípios do sistema único de assistência social que, como na saúde, deve ser os da universalidade, hierarquização, regionalização, participação, acrescidos da unificação (comando único), solidariedade, inovação, financiamento adequado, eficácia, custo resultado, eqüidade e garantia judiciária. Todos estes princípios foram detalhados em 1995, no documento “Subsídios à Conferência Nacional de Assistência Social6” todavia, até hoje, esse sistema não está implantado. A experiência de gestão dessa política social permite agregar quatro campos de ofertas da assistência social: • institucionais, físicas e materiais; • trabalho social; • trabalho sócio-educativo; • defesa de direitos sócio-assistenciais. As ofertas institucionais físicos e materiais incluem a definição dos espaços institucionais e sua nomenclatura no campo da assistência social. Outro campo é o do acesso a benefícios, seus critérios, cobertura, modalidades, entre outras especificações. E, por fim, a rede de serviços hierarquizada em: • porta de entrada única; • rede socioassistencial básica; • rede socioassistencial especializada. Para além dos benefícios e dos serviços, há também o campo de projetos. 6 Refiro-me ao texto “Desafios para fazer avançar a política de assistência social no Brasil”. IN Revista Serviço Social e Sociedade, n.º 68, Cortez Ed. 2001, p.p. 54/82. Quadro de especificações das ofertas da assistência social com base na gestão da assistência social de São Paulo Serviços Ofertas Materiais Trabalho Social Trabalho Socioeducativo Defesa de Direitos 1. Abrigo para adultos sob cuidados especiaisAbrigo especial para mulheres 3. Abrigo para crianças e adolescentesAlbergue (ver Núcleo de Serviços com Albergue) 5. Casa de acolhida/passagem. Central de Atenção Permanente e de Emergências – CAPE 7. Centro de Convivência Intergeracional 8. Centro de referência da assistência social – CRAS 9. Centro de Referência da Criança e do Adolescente em Risco (Estação Cidadania) 10. Centro de Referência do Idoso 11. Família acolhedora 12. Moradia provisória 13. Núcleo de apoio à inclusão social de crianças com deficiência 14. Núcleo de apoio a habilitação e reabilitação social para pessoas com deficiência 15. Núcleo de atendimento e trabalho socioeducativo com famílias (NAF, Fortalecendo a Família, Capacitação de Adultos e Trabalho Social com Populações Indígenas). 16. Núcleo de convivência para idosos 17. Núcleo de defesa e de convivência da mulher 18. Núcleo de Serviços/Convivência para população em situação de rua (Casas de Convivência) 19. Núcleo de Serviços com Albergue I 20. Núcleo de Serviços com Albergue II 21. Núcleo Sócio-Educativo de 06 a 12 anos (EGJ) 22. Núcleo Sócio-Educativo para adolescentes de 12 a 15 anos (EGJ) 23. Núcleo Sócio-Educativo para Adolescentes e Jovens (15 a 18 anos) (QP e Agente Jovem) 24. Núcleo Sócio-Educativo para Jovens (18 a 24 anos) (QP) 25. Núcleo Sócio-Educativo para adolescentes e jovens em medida socioeducativa 26. Projeto.Oficina.Boracea 27. República Jovem28. Restaurante Escola 29. Serviço de atenção à adultos com pena alternativa 30. Serviço de atenção à situações de emergência 31. Serviço de proteção e apoio a crianças e adolescentes vítimas de violência, abusos e exploração inclusive pelo trabalho infantil (PETI/Sentinela/Cuida) 32. Serviço de proteção jurídico-social e apoio psicológico à crianças, adolescentes, jovens e famílias em situação de risco. •Abrigamento; •Acolhimento em família guardiã; •Albergamento; •Alimentação;•Atendimento a vítimas de situações de emergência ou calamidade pública; •Banco de Dados das Organizações e dos Serviços Socioassistenciais; •Banco de dados de crianças e adolescentes em situação de rua; •Banco de dados de pessoas adultas em situação de rua – SISRUA; •Banco de dados de usuários da assistência social; •Banho e higiene pessoal; •Canil; •Central de Comunicação; •Condições de repouso; •Endereço de referência; •Escuta; •Espaço de estar e convívio; •Estacionamento de carroças de catadores; •Guarda de documentos; •Guarda de pertences; •Lavagem e secagem de roupas; •Lavanderia – escola; •Moradia subsidiada; •Orientação e encaminhamentos; •Provisão de benefícios eventuais; •Recepção; •Restaurante- escola; •Sistema de referência de informações, estudos e pesquisas; •Vestuário. •Abordagem programada de rua; •Acesso e referência da(o) cidadã(ão) a serviços socioassistenciais; •Acompanhamento de adolescentes cumprindo medidas socioeducativas; •Apoio psicológico; •Atendimento jurídico; •Atividades de habilitação e reabilitação; •Banco de Talentos; •Cadastramento socioeconômico; •Cadastramento, seleção e capacitação das famílias; •Documentação pessoal; •Equipe de prontidão; •Escuta; •Estudo social; •Inserção de pessoas com deficiência na rede de serviços; •Operacionalização do recebimento do pagamento do benefício; •Orientação e encaminhamentos; •Orientação individual / grupal e familiar; •Orientação individual/grupal / familiar (família de origem/família substituta); •Orientação jurídica; •Proteção e apoio à vítimas de violência; •Provisão de Benefícios Eventuais; •Recepção; •Referência e contra-referência; •Vigilância dos espaços públicos; •Vigilância dos espaços públicos com presença de; pessoas em situação de rua; •Visita domiciliar à familiar. •Capacitação e preparação para o mundo de trabalho; •Desenvolvimento do convívio; •Fortalecimento do convívio de vizinhança; •Fortalecimento do núcleo familiar. •Ouvidoria; •Contratos de compromissos; •Instâncias de manifestação; •Instâncias participativas de arbitragem; •Representações e delegações de usuários em processos decisórios. •Universalização dos acessos; •Universalização do protagonismo; •Direito à diferenciação/equi dade; •Universalização da cidadania; •Construção de novos sujeitos coletivos democráticos; •Orçamento participativo. Fonte: Norma Técnica de Assistência Social da Secretária Municipal de Assistência Social da Prefeitura de São Paulo. 4. a intersetorialidade e a política de assistência social Não considero incompatível estabelecer a especificidade/particularidade da assistência social com a perspectiva de intersetorialidade. A ênfase em novos modelos de gestão democrática de base territorializada, o alcance do direito à diferença e, com ele, a heterogeneidade e a perspectiva de unificação das diversas políticas sociais sob o princípio da inclusão social vem construindo princípios do que denomino de políticas sociais de terceira geração. Isto é, não são noções residuais, como também não setoriais como mundos apartados. A idéia da complementariedade é fundamental para esta terceira geração. O conceito de políticas setoriais duras levou a propostas extensivas de cada política social. A exemplo a saúde, como o bem-estar e a perspectiva integral; a habitação com a concepção de habitat e meio ambiente; enfim as interelações num dado momento foram sendo incorporadas às políticas sociais e, por vezes, diluiu seu conteúdo principal. A questão do âmbito de cada política social supõe a divisão institucional de gestão combinada com o âmbito de cada esfera e instância de poder (Judiciário, Legislativo, Executivo, União, Governo Estadual e Prefeitura). Neste desenho as políticas sociais ainda combinam o caráter próprio, o complementar e os diferentes modelos de gestão. Estes podem conter mecanismos de gestão intersetorial que, em geral, são articulados com gestões descentralizadas, territorializados e equânimes, isto é, respeitam a diferenciação, a heterogeneidade e a equidade. Certamente a assistência social é uma política capilar, isto é, ela penetra com seu serviços, benefícios e trabalho social os direitos sociais no cotidiano. Seu repertório é muito ligado ao formato de vida das pessoas, o que é próprio a uma política de proteção. É uma política que se desloca para o território, e como a saúde desloca-se de unidade física do serviço até o local de permanência das pessoas ou de sua morada e convívio. A assistência social desterritorializada, sua ação para o lugar onde estão as pessoas. Ela é pró-ativa e não só prontidão para atendimento a quem chega ao serviço. Nessa condição a base territorial é um dos significativos espaços para a articulação intersetorial de necessidades e de conhecimentos. Aqui residem dois campos: • a intersetorialidade no conhecimento da realidade que supõe a produção de informações que fortalece as evidências sobre os determinantes e condicionantes intersetoriais na produção de necessidades sociais; • a intersetorialidade na ação que supõe a criação de articulação intersetorial para potenciar ações e resultados. Para ambas perspectivas é preciso, porém, um eixo de articulação que entendo ser: • um projeto ético-político central na democracia e justiça social; • a capacidade de aceitar e conviver com a diferença, a heterogeneidade e a eqüidade; • a luta por superar o sofrimento humano e a construção da felicidade.